domingo, dezembro 24, 2006

Água



Como um riacho, correndo silenciosamente por entre as pedras. Incolor, sem sabor. Quase pedindo licença para acontecer. É ser-se assim, mulher. Mas fonte de vida, força da natureza que move o mundo. Frágil, só no aspecto. Delicada. Submissa. Trauteando inaudivelmente a sua melodia triste. E não importa quantas barragens se construam, quanta areia se lhe roube… Não importa, porque a água haverá sempre de encontrar um caminho por onde passar e continuar a alimentar bocas secas e terras inférteis. É de uma bondade infinita, ainda que tão poucas vezes os olhos vejam nela para além do seu próprio reflexo.
Porquê, porque continuamos a estreitar-lhe as margens? Pensamos sempre que a descriminação está tão longe… E continuamos a desculpá-la, a fechar-lhe os olhos em nome de um pretenso respeito pela cultura e pela religião. Ainda que assuntos de bolso já justifiquem que se rompa esse tão oportuno respeito. Pois eu digo para quem quiser ouvir, o preconceito está-nos entranhado na carne. E de tão irracional eu me pergunto como nasceu. Já lhe chamei medo ou talvez ignorância… Mas nada – nada disso! – legitima a crueldade. Em certas épocas e lugares, enclausuramos mulheres em vestes brancas ou em burkas, matando-as em vida. No nosso mundo perfeito, aceitamo-las como supostas “iguais”, mas do resquício de divindade na mulher, que continuamos a tentar estrangular, resta muito pouco, enquanto as mergulhamos em medos, culpas e outros constrangimentos sociais. Invertemos as formas e da pureza natural da mulher fizemos uma árdua conquista. Já se contam muitos os nomes que lhe deram, aceitando-se sempre que o homem estivesse acima do bem e do mal e à mulher coubesse o heróico papel de manter-se imaculada, não obstante o pecado e a discórdia que carrega consigo. Eva, Maria Madalena, Helena de Tróia, Pandora… Em cada história, uma lição envenenada. É tão prático sacudir dos ombros uma responsabilidade que uma tradição milenar faz recair sobre as mulheres… É tão fácil…
Hoje vangloriamo-nos de termos dado às mulheres o leme das suas próprias vidas (que evoluídos que nós somos!), mas continuamos a apontar-lhes o dedo, a mantê-las presas a considerações sobre a sua sexualidade, a sua carreira e a educação dos filhos. Exigimos-lhes que sejam super mulheres, que se dividam constantemente para que nunca falte conforto e repouso aos seus homens. Não é também essa uma forma de prisão? Demos-lhe a escolha, mas barrámos-lhe os caminhos, manipulando-as frequentemente através da sua particular fragilidade… O relógio biológico. Não estará na hora de partilharmos efectivamente responsabilidades? Os homens que o desejam continuam a ser carimbados como ovelhas tresmalhadas, rotulando-os com anedotas machistas, confundindo justiça com feminilidade, calando-os à força do preconceito. São tantos os estratagemas… Instituições aceites pela sociedade e jamais questionadas sem que se levante um riso trocista e talvez aquele comentário boçal “feminista”.
Não pretendo luzes, nem passadeiras vermelhas, só me pergunto… Em que momento o branco amordaçou as cores dos saris? Qual é a ténue fronteira entre a beleza impoluta das deusas dos poemas e as mulheres que negligenciamos todos os dias? Porque continuamos a tentar controlar as forças da natureza? É uma batalha perdida, sempre o será. Pode ter custado muitas lágrimas, muitas vidas devotas a um sofrimento ímpar, quantos assassinatos a sangue frio, quanta maldade… Pode levar séculos, mas a água jamais irá parar.


Já agora... “Water” é um filme obrigatório.







sexta-feira, dezembro 15, 2006

Geração rasca?


Esgota-se o tema em si mesmo de cada vez que concluo, trauteando pensamentos entre um dizer e outro, que cada geração, imbuída das particularidades do seu tempo, dá à luz pessoas brilhantes e comuns ou - deveria dizer - pessoas que se distinguem socialmente e outras que se fundem na massa homogénea do anonimato; bons profissionais e medíocres; pessoas cultas e desinteressadas, familiarmente integradas e sólidos independentes. Não é disso que me cabe falar, ainda menos julgar. Parece-me inconclusivo e até desnecessário.
Permitam-me, contudo, a ousadia de questionar esta sociedade de facilitismos. Não posso deixar de sentir as vísceras contorcerem-se de cada vez que me deparo com professores a dissertarem para uma sala vazia ou quase pedindo licença para ensinar uma plateia demasiado ocupada entre a azáfama dos telemóveis e da conversa sobre a vizinha do lado. Há palestrantes a mendigar audiência pelos corredores... Entristece-me, não posso negar, cai-me como um seco murro de raiva no estômago. Houve tanta gente a lutar para que pudessemos ter o conhecimento ao alcance da nossa sede, todos os dias, que me parece de todo desprezível a indiferença quase a rasar o desrespeito que habita os olhos dos meninos de hoje.
De que serve instituir faltas de presença nas aulas e créditos a seminários, falseando uma responsabilização que deveria brotar espontaneamente das consciências? Sem qualquer réstia de moralismo, o que digo vem de um profundo desgosto que me rói e da vergonha de uma geração que confunde tirar uma licenciatura com saber ser e de um país que o permite. Levámos o paternalismo de toda uma nação pós-salazarista, imersa em culpas e traumas, a um extremo que em nada nos eleva. Pelo contrário. Fizemos das nossas crianças pequenos ditadores, tudo em nome de uma formação livre de rejeições, segundo os ditâmes da psicologia dita moderna. Qualquer "não" dito na mais tenra idade poderá causar uma ferida profunda que se repercutirá em cada gesto para o resto da vida. Presumo que estejamos a considerar que vivemos num país de pessoas intrinsecamente perturbadas, à força de bastantes gritos e um punhado de estaladas numa infância cega a métodos pedagógicos e alheia a computadores!
Chegámos a um ponto de ruptura. Somos todos formados e cidadãos europeus, mas nunca saímos do país, nem aprendemos senão a decorar e, quem sabe até, com um certo jeito, a colar a matéria dos manuais no exames. Continuamos a ser a sociedade dos "chicos espertos", mas agora perfeitamente legítimos e justificados, afinal porquê trabalhar quando haverá alguém que nos levará ao colo? Os esforços, maiores ou menores, dos nossos pais conquistaram-nos um lugar ao sol e, por isso, merecemos dedicar-nos o resto da vida ao diletantismo. Até porque há uma espécie de semi-divindade que nos coloca numa posição de superioridade face aos comuns mortais. Nós podemos, é a palavra de ordem. Mas e o que é que nós fazemos?
Não me interpretem mal. Era urgente mudar, apaziguar o autoritarismo e dar garantias às gerações vindouras. Mas isso não é sinónimo de retirar toda a carga de responsabilidade, consciência e esperiências (boas e más) que compõem a vida de qualquer pessoa. O crescimento também se faz de quedas, que ensinam lições de humildade. Estamos a criar pessoas inutéis, que vivem através da televisão e a qualquer adversidade se trancam no gabinete do terapeuta. Vamos mostrar às nossas crianças o prazer de um fruto arrancado com as nossas próprias mãos, a satisfação de um reconhecimento merecido. Vamos desligar a televisão e explicar-lhes que não há um público a avaliar os nossos passos e que é a nós mesmos que devemos primeiramente o respeito de sabermos que conquistámos o nosso espaço. Vamos ensinar-lhes que a auto-estima se contrói de lágrimas e suor e do deleite de saborearmos o caminho. Vamos gerar um futuro capaz. É urgente.

sexta-feira, dezembro 08, 2006

Longe demais


Foi a forma como ele disse Miguel. Não era o timbre da voz, nem a pronúncia, mas a combinação de sons, silêncios e cor que transformavam a promiscuidade daquela palavra, saltitando de boca em boca, numa palavra única. Miguel, dito assim, era a assinatura dele. Tê-lo-ia reconhecido entre mil bocas dizendo Miguel. Jurou ouvi-lo, escorrendo daqueles lábios, exibindo uma fileira de dentes perfeitos. Mas não era ele, faltava-lhe o dente afiado desafinando a melodia perturbantemente doce que era o rosto de Fernando. O sorriso que escondia aquela voz não era o dele, mas a palavra pairava ainda no ar como uma nota solta.
- Ouviu-me, Miguel? Perguntava-lhe se já terão o orçamento na próxima semana.
Enquanto descia a rua, Miguel perguntava-se quantos anos teriam passado desde que ouvira o seu nome ser dito assim e porque tinha perdido as pontas dos laços que o prendiam à única pessoa que nunca tinha conseguido esquecer. Uma cena com um namorado de Fernando, recordava-se vagamente. O seu olhar castanho engolindo abruptamente um sentimento que, pela primeira vez, não soubera ler-lhe. Pensou que ele voltaria, como sempre fazia depois de uma discussão. Fernando era uma pessoa tempestuosa. Mas na semana seguinte estaria de novo vagueando pela sala com uma garrafa de whisky na mão e aquele sorriso imperfeito e diria "Larga lá isso, Miguel, hoje vamos comemorar.". E rir-se-iam, ririam até saltarem lágrimas do canto dos olhos. Porque na sua vida de comuns rapazes nunca havia nada a comemorar. Sim, eram ainda rapazes naquela altura. Depois Fernando sentar-se-ia junto da lareira a desfiar o novelo das zangas com o último namorado e Miguel suspiraria, lamentando ter passado já demasiado tempo desde que se deslumbrara com as birras de alguém. Ficariam assim até de manhã, fazendo contas à vida. Nunca chegavam a conclusão nenhuma, isso era um tácito ponto de honra entre eles. Mas Fernando não voltou. Nem naquela semana, nem na seguinte, nem em todas as que se seguiram.
Miguel passou a mão pelo cabelo quase grisalho, recordando-se da sua antiga cor despudorada de sol de verão. Loiro e pequenino, tinha sido sempre a razão pela qual Fernando rasgara calças e joelhos, fazendo-se valer de todo o seu 1,90m para o defender. Maldito orgulho, pensou, que o impediu de procurar o amigo. Lembrava-se vagamente de ter telefonado uma ou duas vezes, mas tinha-se deparado sempre com a gravação irritante do atendedor de chamadas. Nunca gostara dessas modernices, arrepiava-o a impessoalidade de falar para o vazio. Essas chamadas nunca foram retribuídas.
- Amanhã é longe demais, sempre os sensatos conselhos de Sara. Miguel sabia bem porque casara com aquela mulher. Não lhe enaltecia os sentidos na febre das paixões, mas apaziguava-lhe a alma, dava-lhe um chão depois de tantos anos à deriva. Lançara âncora devagar, mas para nunca mais partir daquele porto. Amava-a. De um velho amor adocicado. Se tivesse tido um filho, ter-lhe-ia chamado Fernando, mas Sara tinha o ventre seco. Era ele o menino dela e Miguel apreciava-lhe a ternura. Ela pousou-lhe a mão no queixo, conduzindo-lhe o olhar para o dela. «Sabes o que tens a fazer.».
Tocou a campainha, sentindo apertar-se-lhe no estômago o peso dos anos. Perguntou-se o que diria, o que faria, se o amigo assomasse à porta. Tentou imaginar o que seria do seu cabelo preto e das longas pestanas ladeando-lhe os olhos. Ter-lhe-ia a vida traído a beleza? Imaginou-lhe a barba por fazer, fazia parte do charme de Fernando. Nunca conhecera outro como ele, arrastando toda a nostalgia romântica dos galãs a preto e branco no seu passo seguro, com as pontas do cachecol a flutuarem-lhe irremediavelmente atrás. Fantasiava que a sua vaidade permanecesse intacta.
- Sim? Era uma voz de mulher. Enganara-se na campainha, o número da porta oculto sob a poeira da memória. Há seis meses que o apartamento de Fernando estava abandonado. A vizinha era simpática e Miguel subiu. Da porta violada e dos estores partidos, não se lembra senão da desolação de ver o passado afogar-se eternamente nas águas fundas do esquecimento.
Esse Inverno foi sombrio, submerso em culpas e alucinações. Mas seguiu-se a Primavera e, por fim, o Verão. Com carinho, paciência e muitos bolinhos de canela, os seus preferidos, Sara foi quebrando o gelo, acalmando-lhe as dúvidas, lembrando-lhe que nunca se deve deixar o remorso esmagar a magia das recordações. Viram muitas fotografias juntos e choraram no ombro um do outro. Os sentimentos naufragados, os gestos errados, os anos que o separavam da reconciliação que nunca tentou, todas as feridas abertas foram sucumbindo ao perdão e à aceitação de que não poderia exigir mais de si do que o que saberia na altura. Miguel tinha voltado à loja de informática, à azáfama dos preparativos para a viagem de férias e não pensara mais em remexer na inevitável partida do seu amigo.
Até àquele dia. Era uma dessas tardes pachorrentas de Junho, Sara tinha saído para fazer umas compras e Miguel organizava a contabilidade, quando a campainha tocou. Estranhou, não estava à espera de ninguém. Talvez Sara tivesse convidado algum amigo para lanchar e se tivesse esquecido de lhe dizer. Arrastou as pantufas até à porta para receber, desconfiado, um pequeno rapaz, meio ofegante. Era uma encomenda, não tinha remetente, só um selo um pouco gasto que indicava ser de Paris. A data era de há uma semana atrás. Abriu, suspenso a meio tempo entre a curiosidade e o medo. O coração quase lhe parou ao reconhecer a letra.
«Querido amigo, talvez tenha passado tempo demais. A vida cobra caro cada porção de silêncio. Espero que não seja já tarde para te pedir desculpa. Desculpa por não te ter atendido o telefone, nem te ter voltado a procurar. Desculpa por não ter ido ao teu casamento, por não te ter levado a beber um copo no dia em que soubeste que nunca poderias ser pai. Não te espantes, eu fui sempre sabendo de ti, comemorando as tuas vitórias e sofrendo as tuas tristezas. Estive sempre por perto. Espero que venhas a compreender. Quando soube que a minha vida se tornara mais frágil do que uma pequena folha estaladiça de Outono, não pude ficar para ver os teus olhos tristes. Perdoa-me o orgulho, nunca consegui aceitar que me visses encolher-me sobre a minha própria pequenez. Erros, amigo, erros que se pagam caro. Agora que só espero que um último sopro de vento venha apagar a minha chama, achei que talvez não fosse tarde demais para te dizer: Desculpa-me. Do teu sempre amigo, F.»

quarta-feira, dezembro 06, 2006

O universo em ti

Fotografia em www.fotolog.com/vanish_ladies


É aparente a indiferença. Só pode ser. Não me digas que nunca sentiste o tempo parar perante a imensidade do mar, eu não acredito. Ou que não viste uma lágrima chegar ao ouvires uma música e ficaste, assim, de olhos fechados, fundido num momento intemporal. Seria demasiadamente pesado sentirmos a materialidade da nossa existência o tempo todo. Mas há momentos… Há quem chame abstracção, eu prefiro consciencialização. Há momentos em que ascendemos a tudo aquilo que somos, apanhados desprevenidos por um pingo de chuva no verão, estremecendo diante de um olhar. Como se de repente soltássemos as amarras da cegueira que nos distrai o tempo todo e víssemos, pela primeira vez, a essência de um mundo que não pára de se reinventar. Há um milagre em cada um dos teus sonhos e em cada manhã em que acordas. Um milagre em cada um de nós. E uma história, e tormentas, e amores e tantas memórias. Sinto-me tonta só de pensar. Como quando imagino o universo.


Há um universo em ti, sabias?


No trilho que deixam as mãos quando te passam no rosto, a poeira das estrelas sacudida dos teus ombros; há um rio correndo nos teus olhos e um cheiro por detrás das orelhas que é só teu. Há um segredo em cada um dos teus poros, uma melodia irrepetível no timbre da tua voz, uma assinatura única na forma como caminhas. Não precises de te apaixonar para ver isso. Não esperes para perder para reconheceres a autenticidade de alguém. E não deixes de te amar a ti próprio, nunca, em momento algum. Gosta dos teus defeitos, do nariz torto, do dedo pequeno, do cabelo rebelde. Sente-lhes o sabor a sal e a trovoada. Agradece-lhes por te tornarem perfeito. Ama a perfeição nos pormenores. Cada segundo e todas as inspirações que lhe vêm coladas à pele. Não percas tempo com críticas, não deixes de te emocionar. O presente é aqui e agora. Conversa contigo próprio. O tempo todo. Ri-te dos teus erros, não tenhas medo de chorar. Abraça a vida com força, sente-lhe as arestas, desespera se for preciso até o riso te nascer nas entranhas. Mas vive, vive o teu pedacinho de universo. Escreve as tuas pegadas, risca o teu nome na areia, sem medo de se apagar. Haverá sempre cimento fresco para o recordar. Diz às pessoas que as amas e recebe o amor delas com a certeza de que o mereces. E, todas as noites, quando deitares a cabeça na almofada virá um sorriso pousar-te nos lábios. Porque a intensidade é o segredo. Não te esqueças, sê lua que brilha no lago inteiro. Se estiver lua nova, não interessa. Aprender-te-ei os ciclos. Mas reflectir-te-ás sempre em mim, mesmo que mais ninguém te veja. Há todo um universo em ti.

segunda-feira, novembro 20, 2006

Viperina

Fotografia em www.fotolog.com/vanish_ladies

É o teu riso, que outrora fustigou as cordas vibrantes da minha felicidade, o teu olhar perspicaz, despindo-me os medos e ansiedades. Esse teu tom doce e a carícia que pousas, quase por descuido, femininamente no meu ombro. São as promessas de eternidade ecoando no meu peito esvaziado de toda a ternura por ti. Sou eu, frágil na minha intimidade, diante do teu dedo acusador mascarado de elogio, da tua requintada ironia e crueldade. E quem nos visse assim, braço dado, sorrindo pela rua, diria que a amizade resiste às tempestades do ciúme doentio e da paixão. Di-lo-ia sem se aperceber do rubor escaldando-me a face e o coração apertado, tão pequeno, contra o desgosto e da máscara vitoriosa no teu rosto, que nunca deixas cair. Sacodes-me com a ponta da tua unha cuidada e pensas que assim te consegues livrar dos fantasmas da inveja que te esmagam a altitude. A autenticidade faz-te sombra? Talvez não te sintas suficientemente boa. Serei eu só o pretexto? Penso que terás visto em mim aquilo que desejaste ser.
Tens uma forma cadenciada de atacar, seduzindo-me cortesmente para o teu ninho de intrigas e traições, fazendo-me acreditar num passado que foi sempre só meu. Quando me tens, bem presa entre na tua teia, sibilas palavras pontiagudas e fá-lo de com uma voz melíflua, tão delicada que pareces cantar. No sangue derramado, cospes o teu veneno e ficas, recostada, a saborear a contorção do corpo moribundo, amordaçado pelas mãos da vergonha e do constrangimento social. Pensas que assim neutralizas o poder que, distraidamente, emano sobre ti. Eu olho-te, já sem que a íris se me raie dessa estranha espécie de dor que é a desilusão. Olho-te, atentamente, analisando-te sem carinho ou compaixão. Retiro o espinho que deixou a tua passagem e a lágrima seca por não haver rio por onde correr. Já em ti vejo pingar o ácido que trazes na língua, percorrendo-te a alma de calafrios. Aliviou-te o que disseste, o que fizeste? Permite-me ousar dizer que não. Vejo-o no teu sorriso macilento, ainda que o olhar continue a manter aquele rasgo viperino que, por descuido, se pode confundir com vitalidade. Para alguém tão inteligente até que demoraste a perceber que o que te intimida não é a minha presença, mas a ausência dela em ti. Assim, serei sempre o que nunca conseguiste ser, enquanto tu te aninhas na tua mediocridade. Desculpa-me a sinceridade, para hipócrita já basta essa dança de cortesias que representas tão bem.
Tens o jogo na mesa, as mangas arregaçadas, como sempre estiveram. O meu ás é, precisamente, a despretensão de querer ditar as regras. Vou continuar a aceitar os teus falsos dizeres e os teus truques sujos e a ignorar o brilho malicioso acautelando-te os passos. Não quero saber o quanto de prazer tiras disso se, para me magoares, precisas que eu te deixe. Já houve dias em que bebi sofregamente as palavras da tua boca, em que arrisquei deixar-te entrar. Agora a porta está fechada, para ti há só restos ou nada. Nunca poderei ser a ponte para a tua felicidade. Nunca, debaixo dos teus pés, te farei uma pessoa melhor. Tenta aprendê-lo por ti, o quanto antes. Para mim, és apenas um ser abandonado à sua própria humilhação, um pedaço desfigurado daquilo que pudeste ser. Compreende que sugares a seiva que corre sob a minha pele não reinventará a tua. Não sou um obstáculo, tão só uma realidade com a qual tens que saber viver. Se para ti isso é demais, minha querida, já não é um problema meu. Para mim, chega de enredos e de mentiras. Não quero fazer da minha vida um teatro. Deixa-te de erguer moinhos de vento, um dia já te quis tão bem… Tens o segredo do carisma por entre as mãos, mas ele vai-te escorrendo pelos dedos em cada manhã que escolhes o caminho mais fácil. A ambição, a sede interminável de monopolizar a vida dos outros, cegou-te os olhos para o essencial. Procura-o em ti. O meu papel na tua vida acabou por aqui.


terça-feira, novembro 14, 2006

Pequenas gotas de cristal


Houve quem lhes chamasse pequenas gotas de cristal
Pérolas encobertas nuns lábios apertados.
Quem lhes escrevesse poemas,
Quem lutasse e enlouquecesse por elas.
Houve quem morresse por as acreditar.

Na sua eterna juventude de seixos rebolando pelos séculos, as palavras conservam essa beleza ousada que inebria loucos e poetas, umas vezes cruel, outras doce, sempre capaz de render uma vida à devoção. Se me perguntassem se as amo, diria que talvez tenham sido a minha verdadeira e insolúvel paixão. Se me perguntassem se viveria sem elas, perguntaria de volta se é possível viver sem alma. Talvez seja, como um junco flutuando despido de vontade ao sabor dos caprichos do vento. Mas, em mim, as palavras fazem vibrar as cordas enferrujadas das emoções. Gosto de ficar de olhos fechados, sentindo-as escorrem-me como beijos pelas curvas e recantos das recordações, de correr atrás delas, rindo e desesperando. Faço-as acontecer, um poder que não é só meu. Há nelas uma qualquer vontade de nascer. Quando é hora, desprendem-se do carnal espectro da minha mortalidade e pingam sobre o papel, deixando para trás apenas aquele perfume quase imperceptível a jasmim dos sonhos que nos acordam à noite e se confundem com a realidade. É inevitável pensar nelas, revivê-las, reinventá-las, amá-las até à inconsciência. Ter sobre elas um insensato sentimento de posse, cunhá-las como impressão digital. Rodeá-las de segredos e chaves secretas, códigos complexos e enigmas indecifráveis, trancá-las sob a sombra obscura dos sentimentos jamais confessados. Para que nunca sejam de ninguém tanto como minhas. É nelas que se liberta a minha ténue humanidade para que eu, quando, como folha estaladiça, me despedaçar sob o peso inevitável dos anos, seja fada saltitando a minha derradeira essência por estas linhas.
Ando cega, escutando-as a toda a hora. Vejo-as espreitar do bolso do casaco castanho que se agita ao fundo, de um olhar felino, de um meio suspiro que juro que quase ouvi, mas as palavras são ninfas infantis que gostam de inventar jogos de faz-de-conta. Afinal de contas, é de mim que elas brotam. Por isso, dispenso o mundo por agora. Preciso de estar com elas. Penso-as a dormir e sonho-as acordada, embalo-as o tempo todo, porque elas são a mais profunda expressão do meu mundo, um reflexo do meu ego. Rompem-se-me do peito com angústia e ternura, com a violência de um grito incontido, manipulam-me o sorriso, não me deixam descansar e eu devo-lhes uma total lealdade. São como crianças, dormitando ao sol e à chuva da minha intempestuosidade e quem as vê assim, tão frágeis pedindo para acontecer, não lhes sabe a tirania. Queimam como droga corroendo-me as veias, tatuadas com a voluptosidade do fogo na minha pele, são pedaço de mim para onde quer que eu vá. Desenham cortinas sobre os meus passos, alheios aos dias, de tão perdidos na perpétua necessidade de lhes dar vida. Estão tão entranhadas que às vezes já nem sei se escrevo para as viver, se vivo para escrever. A tudo, eu procuro-lhe as palavras, os sentimentos como corpos mortos dos quais disseco qualquer coisa para dizer, uma observação constante de um mundo que se faz daquilo que penso. Há mais de construção do que de realidade, mais de interpretação do que de autenticidade. Não é isso que afinal fazemos a toda a hora? Condicionar as vivências por aquilo que sentimos e queremos ver. O amor toldando-nos os sentidos, as doutrinas e supestições, crenças e tradições. São as palavras o meu filtro de memórias, canalizando tão só aquilo que desejo reviver. E, ainda que não deseje, por vezes é imperativo.
É como digo, elas mandam. Escolhem as pessoas e as datas, apoderam-se-me do espírito e da mão e criam novos mundos. Por isso, digo que não saberia viver sem elas, sem esse cordão invisível sobre o qual equilibro cada lufada de vida, que guia os meus passos, que dá materialidade ao meu ser, tão imprescendível como respirar. Não saberia, pois. Sou delas, ausente num permanente estado de embriaguez que me deturpa as imagens. Se no meu espelho, fores mais gordo ou mais alto, se os teus traços flácidos de repente tomarem o vigor de um belo princípe encantado ou te nascer uma veruga mesmo no meio do nariz, não me leves a mal. É da intensidade que se geram as palavras e a normalidade nunca convenceu. As palavras são lendas que nascem do rodopiar imprudente do mundo, exigentes nas suas manobras de diversão, alimentadas de pequenas mentiras. Mas as mentiras na boca delas são verdades. Não me leves a mal. São assim as palavras e eu serei sempre escrava do "palavrear".



domingo, novembro 12, 2006

Diz-se por aí...

Diz-se por aí da vida os maiores disparates. Como se se pudesse encartilhá-la e vendê-la às lições! Que é do grito dos pássaros, pergunto-me eu, do leve sibilar das asas roçando contra o tecido dos vestidos? Aos olhos da diferença formal a que nos prostramos, somos todos irritantemente iguais, formiguinhas correndo de um lado para o outro, tentando açambarcar cada pedra e pauzinho com os quais nem sabemos bem o que fazer. É tanta a inutilidade obstruindo-nos os poros que um grão de areia no sapato errado atiça logo a fúria dos deuses, eis que se urge a tempestade e lá andamos nós a correr para o psicólogo, que é um ser tão confuso e indeciso como nós. Que é do azul irrompendo dos dedos, das conversas que enganam as horas e, de tanto se darem aos ouvidos atentos, deixam os lábios a doer? Um dia, damos por nós confortavelmente sentados no nosso trono de pedras e pauzinhos e sentimos que, para além da intempestiva majestosidade da muralha que construímos à nossa volta, há um ser frágil, que nunca tivemos tempo de conhecer. Nesse momento, amaldiçoamos a vida que não soube esperar por nós, os anos que se consumiram na febre de tentar ser alguém. Ser alguém. No novo dicionário dos afectos, ser é sinónimo de ter. Que é das discussões acaloradas, dos abraços apertados, das lágrimas sinceras lavadas por entre o granito das ruas, porque não se escolhe quando vai chover? Porque nos escorrega o tempo entre os dedos e a materialidade das coisas nos vai iludindo o coração desassossegado? Há uma sucessão de perdas na perpétua insatisfação que nos corrói os nervos, a frustração da espera por coisa nenhuma, um vazio insuprível nos passatempos como ópio para a solidão. Essa solidão que nos vem colada às penas, como um brasão, uma herança de rostos desconexos espreitando por entre os segundos desprevenidos do nosso estar. Efectivamente, não gosto de aparências. Representamos as pessoas que somos e que queremos ser, mas quanto há de autêntico em cada gesto? Casualmente descuidado, levemente despenteado... É como nos tivessemos transformado de repente nos nossos próprios, permanentemente atentos e profundamente aborrecidos, editores de imagem. Que é das longas viagens pela Europa, chinelos e mãos nos bolsos, o estômago revolto na sede do conhecimento? Temos que representar para disfarçar a lacuna de tudo o que não sabemos sobre nós. Porque a televisão nos poupa o trabalho de estarmos connosco. Temos mais que fazer. Deus nos livre do ócio! Temos que nos sentir úteis, é uma certa forma de status. Que é dos pensamentos soltos, voando sobre o papel, das eternas filosofias construindo explicações improváveis sobre o universo, das angústias profundas, das insónias de paixão que servem de berço para doces sonetos infelizes? Somos todos colagens. Um pouco daquela actriz, mais um pouco do outro jogador de futebol e até do humorista a que achamos uma certa piada. Apetece-me arrancar pedaços, rasgá-los com os dentes, quando um deles sangrar, saberei que é genuinamente meu. Estou cansada de sorrisos plásticos, de espelhos que se reflectem infinitamente, de todos os complexos aparelhos que montámos à nossa volta para nos esquecermos de procurar quem somos. Quero o sujo e o feio, o perdedor e o errado, porque fazem parte da vida. Quero atravessar os espelhos que se imitam e descobrir a que sabe a verdade ao contrário. Perceber a humanidade descolando-se de um olhar que o botox, à revelia das leis do universo, tornou eternamente jovem, encontrar o charme oculto num nariz imperfeito, na madeixa fora do sítio e na voz engasgada. Quero um punhado de pensamentos desordenados, um coração sobressaltado, um sono desassossegado. Que é dos olhares que se demoram nos trilhos já tantas vezes percorridos de um rosto, dos abraços que engavetam recordações, passes de mágica, a alquimia dos sentidos? Quero a fúria do mar debatendo-se contra a areia molhada dos afectos, uma guerra de rendições e de suspiros tolos. Quero ver o mundo cor-de-rosa, andar de pernas para o ar, quero encontrar a vontade desesperada de estar contigo, voltar para casa com os lábios cansados de inventar conversas, recriar teorias improváveis para o universo e ficar só a imaginar que todo ele pára para testemunhar esse momento. Sê a linha imperceptível dos meus pensamentos, rouba-me aos segundos um pouco de atenção, desperta-me da nostalgia da espera por coisa alguma, como febre doentia para os meus sonhos ébrios, fascina-me, prende-me e não me deixes dormir. Quero sentir a autenticidade violenta dos beijos tocando as teclas de aço dos meus sentimentos e ficar a ouvir-te desafinar a melodia de um amor imperfeito. Vou morder o isco e sair impune, pecando a ousadia de me sentirviva, profundamente viva, imprudentemente viva.

domingo, outubro 01, 2006

Minha pequenina













Fotografia em www.fotolog.com/vanish_ladies

Uma e outra vez, mostra-me na palma das tuas mãos a alegria arrancada ao centro da Terra, desmanchando os meus moinhos de vento na tua gargalhada, rodopiando na minha cabeça como um louco carossel de cócegas. Vamos dividir o chocolate [ninguém está a ver] e lutar pela surpresa dentro do ovo; se depois me abraçares, semeando decalques das tuas mãos pequeninas na minha camisa, eu não vou reclamar. Deixa-me só entrar no teu mundo de faz-de-conta, rebolar no chão contigo, pincelando o ar de risos coloridos. Contigo vou dançar como um patinho e sentir-me uma princesa, ver todos os desenhos animados sem me preocupar se já quase sei os diálogos de côr e cantarolar a música da Floribella, tu tens na voz a alquimia que a transforma na mais bela para os meus ouvidos. Vou aprender o teu dialecto desconhecido e a tratar pelo nome uma dezena de bonecos iguais.
Quando te vens aninhar nas minhas pernas, achando o espaço exacto que tens no meu coração, sei que tudo está no seu devido lugar. Não há nada para além dos teus olhos em forma de lua a sorrirem nos meus. Dizes-me um segredo, tropeças no meu nome e rimo-nos, como se a vida não nos pudesse magoar. Passas os dedos no meu cabelo, deixando um rasto de estrelas, e eu encosto o meu rosto ao teu para sentir-lhe o cheiirinho a bébé. Em breve, terás adormecido, os teus braços à volta do meu pescoço, a tua vozinha dissolvendo-se num respirar profundo de satisfação. Apetece-me ficar ali contigo, só a ver-te dormir, sentindo os laços de ternura apertarem-se com força no meu peito, invadida pela Paz que inspiras, perguntando-me em que jardins encantados brincarás neste momento.
Há no teu jeito simples de criança uma qualquer magia que me apaga os problemas e desliga as preocupações. Na sabedoria do teu sorriso sincero há uma carícia que, como uma torrente de água fria descendo sobre o meu corpo, me acorda para a importância de estar só para ti, inteiramente para ti. Sacudo as sombras que trouxe nos ombros, dispo qualquer fragmento de tristeza esquecido no meu olhar, e abraço-te, sentindo-me infinitamente feliz por existires. Porque és tão pequena e já sabes a beleza do Amor, saiba eu dar-to sempre fresco e suculento, saboreado aos pedaços.

segunda-feira, setembro 25, 2006

Não partas

Olho para ti... O peso dos anos descendo-te nos ombros, o olhar perdido num horizonte longínquo, para lá daquilo que conheço e posso adivinhar. Há quanto tempo os fechaste para o presente?
Leio-te nas pálpebras as estórias antigas, o rasto de ternura das memórias, o palpitar da vida que te deu tanto e agora, quando a esperavas calma e doce, te traiu. Sempre foste de compleição frágil, mas é de ti forte que eu me lembro... Da seiva que te corria no corpo, as mãos hábeis contendo todo o ímpeto viril de quem soube moldar um destino a ferro e fogo. Na tua boca, havia sempre espaço para uma palavra alegre, porque a vida não se compadece de tristezas. Não fossem os sulcos de vivências marcados no teu rosto e as pernas já derrotadas pela violência da enxada e terias sido um dos nossos, correndo pelo pinhal atrás de um qualquer gato vadio. Quando, diz-me quando, desceste a cortina sobre a realidade e aprendeste os passos para um mundo só teu?
Ensina-me a porta, na melancolia azeda dos momentos, como ópio para a solidão, eu quero encontrar-te. Só para dizer-te mais uma vez que é o céu que nos escolhe, mas que podemos criar o nosso próprio tempo subjectivo. Quero dizer-te que venceste as batalhas, o frio e o medo. Que soubeste ser homem, pai e avô. Quero dizer-te que não há vergonha no teu Inverno, que há dignidade nas tuas costas encurvadas e na pele como o velho tronco de uma árvore, dormitando na tranquilidade de quem já ocupou o seu lugar no mundo. Tiveste que ter força bruta para romper a terra, persistência para resistires aos ventos, fragilidade para procurares o sol e doçura para alimentares os teus frutos. Conseguiste e tudo isso nos orgulha, todos nós que nascemos de ti.
Não nos deixes agora. Não sem te dizermos a alegria de nos teres segurado nos braços, empurrado nas caixas improvisadas de bebidas, cortado queijo e lambuzado connosco de melão que tu próprio arrancavas da terra. Não sem saberes que te amámos e que a tempestade que te fustigou não mudou isso, nem um milímetro. Tens o lugar certo no nosso coração.
Não partas...
A ausência de fotografias deve-se a um problema técnico. Em breve, retitui-las-ei ao seu devido lugar.

sábado, setembro 23, 2006

Regresso

São as asas chicoteando contra a janela fechada dos dias que uma manhã nos sacodem numa viagem turbulenta pelos meandros da vida. É a liberdade a embriagar-nos os sentidos, a juventude a queimar-nos as veias, os ecos da Terra a girar a gritarem-nos desejos aos ouvidos. Partimos, partimos sempre. O mundo lá fora move-se depressa demais e não espera por nós. A sede de experiências arrasta-nos aos trambolhões por rios de risos e de lágrimas. Enchemo-nos de vida, deslumbramo-nos com um ou outro cometa, rasgando suspiros ao céu, mas sentimos sempre o pó do caminho nas mãos e na boca e percebemos que a noite é tão escura ali como em qualquer outro lugar.
Então voltamos... À infância, aos lugares perdidos das nossas remotas recordações. Voltamos, como filhos pródigos, com os olhos secos e o corpo coberto de cicatrizes. Voltamos, sabendo o exacto lugar a que pertencemos. Há em nós um rasto do fascínio que nos abriu as janelas de par em par para receber a brisa do mundo e o profundo conhecimento da nossa alma que, por fim, pudemos tocar. Trazemos na bagagem mil estórias e cansaços, mas queremos é que não nos perguntem nada. Um beijo e um abraço incendiando-nos a ternura, os risos que trazemos no regaço para partilhar, o perfume da casa e das coisas e um caldo que nos aqueça os corações. Viemos sentindo-nos das origens, que sabem quem somos até quando nos perdemos de nós, aceitando um passado que é parte da pessoa que se formou debaixo da nossa pele, descobrindo, surpresos, que sempre amámos a autenticidade dos passos que ficaram para trás, tudo aquilo que a febre do deslumbre nos fez abandonar.
Deixo-me ficar, saboreando o silêncio e a pacatez, deliciando-me com a vida secreta da cidade que antes me parecera tão apática, perguntando-me porque demorei tanto tempo a admitir que a nostalgia do regresso. Volto a casa com a satisfação inconfessável das saudades saciadas, aninho-me no meu lugar no sofá, que já me sabe as formas e se adelga para me receber. Compreendo que a pessoa que vejo no espelho está nua, rasgadas as máscaras da felicidade e da amargura que socialmente incorporam o nosso sorriso, e, ainda assim, sentindo-me tão protegida, vestindo a veracidade íntima de um ser sem pretensões.
Sei que um dia voltarei à solidão da casa vazia, à comida enlatada e às noites vadias. Adoptei o corropio incessante da metrópole como ritmo de vida e algum dia ele há-de arder-me no sangue. Mas também sei que parto com a barriga cheia de um sentimento plácido de doçura, com as mãos a escorrerem carinho e um sorriso maior nos lábios. Sei que levarei este lugar comigo, ainda que em segredo, e que cedo voltarei para me lambuzar de silêncios pulsando vida e de mimos. Sei que esperarei que a porta se abra e tu venhas contar-me as aventuras do dia ou até que te feches num traço mal-humorado, mas que sejas tu. E percorrerei cada passo de volta a casa para te encontrar e para te dizer que, ainda que o vento me insufle as asas e eu largue âncora para destino incerto, é ao teu lado que sou feliz.
Tem a magia de nascer de novo cada regresso a casa...

quarta-feira, setembro 13, 2006

Quatro minutos

Fotografia em www.pages.globetrotter.net/banmona/images/yoga


Hoje aprendi que os mantras da yoga são muito mais do que gestos graciosos que, reflectidos no espelho, enchem o nosso ego de orgulho, mais do que cada gota de suor a lembrar-nos que seremos mais magros, mais elegantes, mais atraentes... Hoje aprendi que os limites do nosso corpo são muito mais acessíveis do que os da mente. Pensamos que somos fortes de cada vez que resistimos às tentações da preguiça, de um doce, mas afinal estamos só a obedecer às pressões da sociedade, marionetas agindo na doce ilusão de viver. À alma, essa que permanece muda e cega perante os holofotes do mundo, não temos acesso. Brilhamos pelo sorriso radiante, pelo olhar magnético, pelas roupas da moda... Mas quantas vezes conseguimos atrair uma atenção genuína por aquilo que temos para dizer, que podemos ensinar?
A yoga, não aquela praticada nos ginásios de luxo ao ritmo dos últimos sucessos do hip hop, a verdadeira yoga, despretensiosa, despojada de colchões topo de gama e luzes que disfarçam as estrias, a yoga pura e dura, dos silêncios intermináveis, dos gestos que importam pelo que são e não pelo que parecem... Essa yoga ensina-nos a persistência de procurar chegar ao fundo de nós mesmos, ao âmago das correntes que nos amordaçam, à origem dos nossos medos, àquilo que efectivamente somos. Assim, sem mais ornamentos.
Quatro minutos... Foram só quatro minutos... Que me pareceram uma eternidade. Só porque nesta sociedade não se ensina ninguém a estar sozinho consigo mesmo. Digo sozinho, não só. Não importa quantas pessoas estavam à minha volta, não havia música, nem televisões, nem computadores ou quaisquer outros gadgets para me distrair... Não havia sequer uma pessoa a passar, uma rua para observar, um semáforo a piscar que me prendesse a atenção. De olhos fechados, estava finalmente diante de mim mesma, enclausurada num momento que sempre evitei. Não levitei, não foi prazer o que senti. Primeiro ruído, um ruído ensurdecedor. Depois toda uma gama de pensamentos disparatados, libertadores, como se todo o “lixo” que venho acumulando no baú escuro do meu cérebro tivesse encontrado uma saída. Ultrapassei o medo do desconhecido, do silêncio e da escuridão que pensava conhecer. De repente, já não sentia o meu corpo, tudo se passava a um nível que conscientemente não dominava, simplesmente assistia ao desenrolar dos meus diálogos calados, apalpando os terrenos novos do meu ser, chegando a planícies desconhecidas de verdades que nunca antes se haviam revelado perante os meus olhos demasiado presos às cores do mundo. Quatro minutos. E tudo era novo neste sítio onde tinha chegado. Tudo o que eu tinha aprendido sobre reflexão, pairando vestida de branco diante de uma janela banhada de luz, havia-se quebrado naquele momento, mas valia tão mais saber agora o gosto sincero das minhas entranhas, sentir-lhe o sabor a sangue e a lágrimas, a risos e suspiros...
Como em tudo na vida, o caminho está cheio de pedras e dói, descer o abismo profundo, olhar o silêncio nos olhos e, com um suspiro profundo de satisfação, deixarmo-nos afundar nos pensamentos que, suavemente, nos deslizam pela mente finalmente vazia das impurezas de um mundo que não sabe quem somos.

Quatro minutos... E tu, sabes quem és?

segunda-feira, setembro 11, 2006

Crush

Fotografia de Martin Roger


Falar sobre amor e ódio, sobre medo e racismo, sobre injustiça e vingança... Falar sobre tudo isso é dizer mundo. O mundo que gira para cada um de nós, entretecendo, quase sem nos darmos por isso, o nosso destino com tantos outros que se cruzam no nosso caminho, por vezes estrelas cadentes perante os nossos olhos mal habituados à escuridão do céu, outras tantas tatuagens que permanecem alheias ao passar do tempo. Atiramos gestos irreflectidamente, como beijos ou como pedras, e nunca sabemos onde vão cair e o estrago que farão. Por vezes, distraidamente, mudamos o ser de alguém num único momento, irrepetível. Só quando soubermos isso, perceberemos que temos o mundo nas mãos. Somos pedrinhas lançadas ao rio, tecendo instantes nas pequenas ou grandes ondas que formamos ao nosso redor, espelhando nelas a nossa alma. No silêncio de cada passo, deixamos pegadas nas vidas que nos rodeiam e o que escrevemos será um dia a recordação que deixaremos para trás. Somos fontes de energia a transbordar, produtos da sociedade e dela absorvemos o cansaço e as frustrações, o altruísmo e a solidariedade. Então que sejamos aquilo que desejamos que os outros sejam para nós.
Algo neste filme sobre a vida no seu estado mais puro me lembra “Favores em Cadeia”, a repercussão impensável de cada uma das nossas atitudes, como um dominó interminável que afecta até o mais longínquo dos seres, ligado a nós por um cordão invisível de afinidades. Gosto assim do dramatismo impudorado de uma realidade que se sabe cruel, mas ao mesmo tempo tão doce, quando a ternura, o amor ou a honestidade encontram o seu lugar num mundo esquecido de amar. No fundo, a primeira frase será sempre a mais importante... O mais doloroso é que todos sentimos o peso da solidão, tão colado aos nossos ombros que colidimos, colidimos a todo o momento, pelo prazer do toque, para nos sentirmos humanos. Em todos nós há um muro à espera de ser derrubado, às vezes basta um olhar, outras vezes é preciso força de leão para levantar uma pessoa das sombras. Mas todos nós - todos, sem excepção - esperamos que uma mão se estenda, que um sorriso se abra e nos mostre que conseguimos ser pessoas melhores todos os dias.
Vê a pessoa pequena e insegura em mim, em cada um, para além do orgulho e da arrogância que me gelaram no rosto. Vê o quanto preciso da tua paciência, da tua compreensão. Não julgues, nós somos as circunstâncias que nos moldaram e tu não sabes como é ser eu. Pensa em como sabe bem o sorriso de um desconhecido na rua, quando alguém que vês todos os dias e mal conheces te tece um elogio ou desculpa os teus erros e te recebe com um abraço sincero. Agora concentra-te na sensação de bem-estar que te envolve e imagina o bem que instantaneamente desejas fazer a essa pessoa. Pensa em como seria bom se isso estivesse sempre a acontecer. Estamos todos ligados, como uma cadeia de peças tocadas pelo vento... O primeiro a cair, arrastará consigo os outros, mas, se nos mantivermos fortes e unidos, seremos uma barreira perante a intempérie. Chama-me sonhadora, eu acredito num mundo melhor.

Vamos colidir, encetar duelos de flores. Sejamos espelhos do que nos deslumbra e enterremos na gaveta dos desperdícios aquilo que nos magoa. Façamos por semear um sorriso em cada dia. Irradiemos luz, por todos os poros, como uma borboleta colorida lançando sonhos. Podemos mais do que algum dia saberemos. Arrisca experimentar...

domingo, agosto 27, 2006

Portugal



Assim que terminam as competições desportivas, encerram com elas o patriotismo exaltado que une um povo que passa grande parte do seu tempo a criticar aquilo que apelidam de “o sistema”. Pergunto-me porquê calar num permanente inconformismo desprovido de acção o orgulho nacionalista que secretamente germina em cada português. Não importa o quão vertiginosamente desça a economia, que a crença nos políticos se vá deteriorando com o passar dos anos e o assolar do fenómeno da globalização... Cada um de nós continua a transportar, oculto sob do ar desiludido, um amor tão secreto quanto incondicional pelo belo país “à beira mar plantado”. É ver, se um estrangeiro elogia Portugal, o brilho no olhar trair o encolher de ombros e o suspiro pesaroso do português, que assim se pretende humilde.

Mas hoje eu vou enfrentar esta insensata tradição, vou deixar as queixas de lado e assumir o prazer de ser parte da nação mais ocidental da velha Europa.

Hoje vou falar de um país que tem a cor da terra e sabe a mar; vou falar das rugas que, nas caras dos mais velhos, contam estórias de trabalho duro e fome; vou contar a beleza das mulheres, que sacodem as formas da vida nas suas ancas latinas; vou dizer como é ainda ter um céu estrelado sobre a cabeça e adormecer com a janela aberta, certa de que o meu sono não será perturbado por nenhum intruso com más intenções.

Hoje vou agradecer o mar que inunda os meus olhos, ora fustigando a costa com a força das vagas que vêm do norte, ora acariciando-a com a ternura mansa do mediterrâneo; vou abrir os braços para o céu de um azul cristalino e esperar que ele se pinte de cinzento, porque neste meu cantinho nenhuma estação do ano é esquecida. Os passos que hoje desenho na areia dourada e escaldante, com o cheiro a flores exóticas colado às narinas, amanhã estarão ladeados de folhas estaladiças de cores berrantes, como se tivessem sido tiradas da paleta de Van Gogh; mais tarde, serão moldes que as crianças atirarão umas às outras em felizes guerras de neve, para a seguir se tornarem ninhos que abrigam o renascer do mundo, das plantas e das pequenas criaturas. O prazer de despir as roupas e os preconceitos e dançar na praia até ao nascer do sol só é intenso porque eu sei que não tardarei a passar tardes no sofá, munida com dezenas de filmes, uma manta e chocolate quente, enquanto, através da janela, vejo chover deliciosamente lá fora. Porque para os tugas é tudo na medida certa.

É na medida certa o verde que salpica os montes, subindo abruptamente até às nuvens alvas; o cinza dos braços de água que serpenteiam até à foz; o azul profundo, agreste, do mar do norte; o laranja melancólico do doce Alentejo e o dourado cheio de vida das areias do sul. É na medida certa a aldeia e a cidade, convivendo pacificamente, respeitando os tempos e os silêncios uma da outra. Porque cada um de nós traz em si o cheiro de terra molhada, as mãos ásperas do campo, os sinais de um passado dividido entre as aventuras no oceano imenso e desconhecido e os braços robustecidos pelos caminhos de pó e as enxadas que alimentavam os sonhos megalómanos de alguns. Porque temos este sangue quente a fervilhar-nos nas veias há muitos, muitos séculos.

Orgulho-me até do que não gosto, dos olhares de uma nostalgia dramática, carregando o peso de uma vida de sonhos possíveis e pés assentes no chão, sob a escuridão cerrada das roupas. Orgulho-me do fado e de dizermos “saudade”, do que soubemos perder, porque nunca fora nosso. Orgulho-me de termos ousado sonhar, de termos enfrentado o horizonte com a coragem de quem se sabe capaz de olhar nos olhos os próprios medos. Orgulho-me do carácter simples e pacífico das nossas gentes, sempre pronto a ajudar. Orgulho-me de ser portuguesa - ainda que tantas vezes o negue - até ao arrepio, dos cabelos castanhos, dos olhos escuros, do sotaque. Orgulho-me das tascas e dos petiscos típicos que fazem a delícia dos ingleses, da intensidade poética da língua, dos mitos e das lendas, das trágicas estórias de amor e traição, das cidades, monumentos desprezados por olhares indiferentes. Orgulho-me, mas não digam nada... Não faz parte do meu ser português admiti-lo.

Por isso me rio quando nos vejo imitarmos tão desajeitadamente as modas internacionais e tropeçarmos em estrangeirismos que soam vazios e nos roubam a identidade. Para quê aspirarmos o novo mundo se temos o paraíso entre mãos?

Saibam sonhar, saibam esperar, saibam gostar... Saibam ser portugueses e orgulhem-se disso.

domingo, agosto 20, 2006

Uma destas manhãs

Fotografia de autor desconhecido

Queria ser a brisa que te acaricia o rosto, passar descuidadamente, imprudentemente, trazer aromas distantes e memórias incertas. Queria ser volúvel, imprevisível, deixando para trás apenas o sorriso nostálgico do que não se sabe bem se aconteceu. Deixar-me ir, como se os sonhos não me pesassem e o destino fosse construído a cada passo. Ser vento, terra e sol; mudar de cor com as estações, escrever a estória ao contrário e ler-me em cada linha. Reconhecer a poeira dos meus desejos na face oculta deste eclipse lunar, ser fiel só aos princípios que regem a minha terra do nunca e soltar todas as demais amarras. Queria dissolver-me na espuma do mar e deambular, divagar nos gestos e nas palavras e ter morada inexacta onde só quem eu quisesse me pudesse encontrar. Que a areia engolisse cada pegada de uma estória que é só minha e a única coisa que seguisse a minha passagem fosse a lembrança de dias felizes. Ser livre, amar como se nunca tivesse sido magoada, dar como se fosse princesa do meu próprio conto de fadas, entregar-me como se não tivesse nada a perder. Queria riscar ao lado, ver o mundo de pernas para o ar, acreditar que a felicidade é possível. Afagar os meus medos e embalá-los até que deixassem de doer, adormecer as inquietudes para ficar em paz com o momento, domar os desejos que me queimam os lábios, querendo apenas o que está ao alcance do meu olhar. Queria esquecer as leis e as probabilidades e descobrir que o justo é a medida dos meus instintos. Conhecer só de estrelas e marés e dos sentimentos que me habitam. Construir a eternidade com as minhas próprias mãos e deitar-me nela, sabendo que o mundo continuaria a girar, indiferente e tão íntimo aos trilhos que percorri e se foram fechando nas minhas costas.
Mas uma destas manhãs acordei sentindo-me atada aos meus sonhos. Se antes foram asas, horizontes abertos perante os meus olhos deslumbrados, agora tomam conta de mim, ditam-me o caminho, cegos às portas que se vão abrindo, inesperadamente. Sou escrava dos projectos que fiz, de cada dia que vivi, da experiência que carrego comigo, como uma âncora que me prende às metas que tracei, aos desafios que assumi, um memo na palma da minha mão que constantemente me lembra daquilo que me programei para aspirar. Uma destas manhãs descobri que há uma pessoa formada em mim, uma forma de olhar e de sentir e um punhado de fantasmas e de desejos. Descobri, constrangida, que eu sou o maior obstáculo à mudança. Uma destas manhãs percebi porque se teme o desconhecido e se amordaça a liberdade que nos cavalga no peito quando ainda não temos o peso do mundo sobre os ombros. Estremece-se perante a sombra, que se aprendeu a recear. Nada em nós foi feito para aceitar. Há lutas que se travam todos os dias, caladas, nos nossos corações e o caminho que, no fim, tomamos é sempre aquele que nos propusemos tomar. Não se pode ser simples como uma linha, um segmento de vida que expira no fim do traço. Tudo o que eu fui, vi e senti, tudo o que eu temi e sonhei, tudo... Tudo isso caminha ao meu lado, entorpece o meu cérebro com tamanha informação e avisos e superstições. Desnecessários, a vida é tão simples. Mas uma destas manhãs, eu aprendi a não ser linear.

segunda-feira, agosto 07, 2006

Longas são as noites...

Em www.fotolog.com/vanish_ladies


Longas são as noites quando o burburinho das ideias me tolda o silêncio dos sonhos. Atordoa-me a vontade de rasgar palavras ao papel, como se assim despedaçasse os pedaços mortos dos pensamentos que não ousei dizer. Há uma qualquer agonia no que escrevo, como se em cada frase doessem os gritos que não dei e tudo o que optei por calar em mim. As palavras que desmaiam nos meus lábios, esquecidas de acontecer, mais tarde ou mais cedo queimam-me o coração. Não sou de rancores, quebro os laços e perdoo o que silenciarei para não mais retomar.

Não gosto de cinzentos, de indecisos, de meios termos. A navegar aprendi a apaziguar as tempestades, mas também a fugir dos céus despidos de estrelas. Já carrego suficientes dúvidas comigo e o desafio de me enfrentar dia para dia; complicações de sobra, diria. Admiro a ira dos ventos e das ondas que nos fustigam, para mim, contudo, apenas almejo o pôr, antiquado e um pouco melancólico, do sol. Ardi em tormentos mil para domesticar as sereias que me cantavam tentações aos ouvidos, agora não vou abdicar da tranquilidade quase outonal da minha travessia. Quero um traço inequívoco na linha das tuas mãos; despedacei todos os esquissos e sombras. Queres fábulas, eu dou-te lendas; mas tudo escrito em papel vegetal porque os trunfos devem estar à vista. É este o meu abrigo, as minhas regras, o meu único pedido. É este...

Longas são as noites quando a vontade não pode mais que o desejo. Um passo separa-me dos corpos abandonados das palavras que não disse, percorro-o, sangrando um pouco, mas ciente de que é esta a minha verdade. Arrisco e não temo, se a compreensão requer coragem. Porque desta vez eu não coleccionarei fantasmas, porque hoje soltarei os monstros debaixo da cama. Esta noite, liberta do peso dos silêncios, respirarei profundamente a tua presença e, feliz, adormecerei...

terça-feira, julho 25, 2006

Duas vidas

Fotografia de autor desconhecido


Será sempre assim... Amar as raízes e aspirar ao céu? Paradoxais são os desejos que alimentam os meus voos; quero ser dona do meu tempo, segurar as rédeas da minha vida, e ainda ser folha arrastada no vento, pintada pelas cores da estação, leve e estaladiça. Preciso tanto do meu espaço, do meu cheiro nas paredes, de caras conhecidas a sorrirem-me do porta-retratos na estante, como da liberdade de vaguear sem destino, gota anónima num oceano de vidas. Gosto de me reconhecer nos caminhos rotineiros, de antecipar cada passo e essa segurança é uma espécie de redoma que me protege das intempéries de um destino caprichoso. O mesmo destino que me acena do horizonte e me fascina; inebriada pelas promessas de aventura, sucumbo à tentação de me fundir no mundo. Quero uma vida normal, com direito a tudo aquilo que fui programada a ambicionar e, com a mesma intensidade fervorosa, desejo escrever uma história original, por entre a poeira dos caminhos e com o céu estrelado como testemunha. Quero duas vidas para viver!
Perdida por aí, sinto-me tão viva... Dilui-se no sangue a angústia das horas, o tempo passa devagar, como uma carícia. Oiço até o coração da terra palpitar-me no peito, se os meus pés decalcam as pegadas luminosas do universo. Viajar mata a minha fome de mundo. Por um instante, sinto-me cumprir o meu destino, como se eu não pertencesse nem a mim, senão ao mundo. Desejo, com os olhos a brilhar de excitação, cada rua, cada pedaço de mar, banhado de luar e estórias de piratas. Vou saquear as emoções que escondem os rostos alheios, dissecar os mitos de cada sombra que desce sobre a cidade. Quero conhecer, conhecer profundamente; olhar para o mundo mergulhada no seio de cada país, vê-lo como ele é visto lá... Mas só por um instante... E depois partir em busca do meu “el dourado”. Que o prazer não está em chegar, mas na viagem e a única coisa que me poderia prender, levo-a comigo. Sentimentos, transporto-os a tiracolo; o tempo encarrega-se de lhes limar as arestas e eu beijo-lhes as palavras e os silêncios.
Preciso de sentir o chão nos pés. Não nasci para ser de um país só. Almejo os sons, as cores, os cheiros, a arte, a alma de um mundo desconhecido, descobri-lo, possuí-lo, deixar-me apaixonar. Quero aprender línguas diferentes, sentires diferentes, lendas e tradições que moldem a forma como vejo o mundo. A beleza escraviza-me e bebo dela, até me latejar nas têmporas. Rasga-se-me o riso nos lábios, se apreendo um pouco mais da realidade. Realidade que também existe aqui... Aqui, onde estou integrada, onde posso ser eu. Aqui, onde pertenço, onde sou feliz. Eu preciso de duas vidas... Duas vidas para me perder e para me encontrar...

quinta-feira, julho 20, 2006

So many words I wish I could say

Fotografia de autor desconhecido


São tantas as coisas que na pressa dos dias, no atropelo das horas, se deixam de dizer...

Dizer, por exemplo:
- Sinto a tua falta.

Às vezes, as palavras pesam. Molhadas de sorrisos abafados, carregando o fardo das saudades e dos desejos, dos medos e das paixões, escondem-se; como se, de repente, o rio que somos deixasse de correr e ficasse, especado, à espera que o leito lhe dissesse para acontecer. Diletantismo medonho este de olhar para o lado e assobiar, fingir que passa, fingir que não existe e viver assim, na ilusão dos segredos calados. Palavras que não são ditas são cadáveres que transportamos nas entranhas, fantasmas que se recusam a ser gente... Ou nada... Mas que sejam ou desistam de ser; não sou de meios termos.

São tantas as coisas que se fingem não sentir. Como se fossem pecado... Um pouco mais, até.

Sentir, por exemplo, que te desiludi.

Olha-me nos olhos e diz-me que eu não fui suficiente... Suficiente disto, suficiente daquilo... E depois engole as tuas palavras, prometo que não vais ter que as repetir. Sou de desafios, da lâmina crua da frontalidade; falsos gestos cansam-me, jogos entediam-me. Por isso, não finjas que não te sentes incomodado. Eu também sinto. Não digas nada, deixa a raiva, o tédio, o medo tomarem conta de ti e, de tanto te possuírem, explodirem num riso fugaz e contagiante. Estou farta de teatros, de farsas, de segundos sentidos. Sê transparente, leal ao que és... Depois do que vi, não me vais assustar. Nem as sombras que pairam nas tuas costas, nem os monstros que escondeste debaixo da cama... Não me vais assustar.

São tantas as coisas que deixamos escorregar-nos entre os dedos.

Tu sabes. Acorda!

O mundo está à tua espera...

quinta-feira, junho 29, 2006

Liberdade

Ai que prazer
não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e não o fazer!

Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...

Fernando Pessoa

Este poema faz parte da minha infância... Tanto que praguejei e espernei... Às vezes, acho mesmo que só o declamavas para me ver irritada... E depois resolvermos a nossa pequena desavença com uma doce luta de almofadas (pobre de quem não tem memórias assim). Demorei tanto tempo para o perceber... Mas agora sempre que o leio oiço a tua voz, grave, ritmada, cheia de vida. Como poderíamos saber que seria este o caminho? Que um dia eu saberia de finanças e só então perceberia a inutilidade de tanto conhecimento, que me entedia, que me preenche, que em mim se transforma em mil outras coisas. Tinhas razão, o que importa é o sol e a lua e as flores e essas crianças que correm à minha volta e me deixam louca... Que têm a minha afeição mais pura. É tão intenso o sabor da liberdade quando é conquistada... Tão terno recordar as nossas tardes... Só queria saber dizer-te como tenho saudades tuas...

domingo, junho 25, 2006

Obrigada por serem luz...

Fotografia de Gonçalo Almeida

Às vezes, a vida dói. São tantos os momentos em que o medo faz descer a sombra entristecida da noite sobre nós... Às vezes, o olhar trai a subtil nostalgia de poder pouco mais do que nada para agarrar a réstia de esperança que nos escorrega por entre os dedos. É nessas alturas que percebemos que temos que entregar o nosso destino e confiar... e acreditar que cada obstáculo no nosso caminho nos aproxima um bocadinho mais do céu.

Para mim, o céu é todo o carinho dos que ficam, dos que não têm medo de olhar a minha dor nos olhos, dos que não se escondem atrás de frases feitas ou de optimismos de plástico, daqueles que me abraçaram e até dos que não disseram nada mas me fizeram sentir que eram âncoras que me prendiam à terra... Porque de vocês eu orgulho-me e por vocês vale sempre a pena lutar.

Faz-me sorrir, por mais triste que o meu sorriso seja, ver as estrelas que não deixam a escuridão roubar-me lágrimas à luz. É de coragem, de muita coragem, abdicar das próprias dores para ser um lugar seguro para o coração assustado de alguém. Se houve quem tivesse fingido não perceber a presença incómoda da tristeza ou quem fugisse, porque desta vez era eu que precisava que me insuflassem vida, também houve quem ficasse, quem não deixasse que me sentisse perdida, quem me mostrasse que a força está em mim e em todos os braços que deixaram a sua própria vida de lado para me virem erguer.

Não posso deixar de agradecer ao mundo, à vida, a Deus ou ao destino... Que eu fiz, que escolhi, que o universo quis para mim... Seja qual for a estrela que reja os meus passos, não posso deixar de agradecer por viver no seio de tanto amor e de tanta coragem. Que estes gestos sejam para mim um exemplo e que nunca eu deixe que os meus próprios problemas me fechem os olhos e me impeçam de estar livre para ser ponte para um lugar melhor.

Obrigada por haver tanta beleza à minha volta, tantos olhos carregados de genuína emoção, tantos pensamentos vestidos de uma preocupação autêntica. Obrigada por ter em casa o melhor exemplo de amor no seu estado mais puro e verdadeiro. Obrigada por haver quem pense em mim ao acordar, por haver quem fique ao meu lado quando o peso do caminho se torna maior do que eu, quem me estenda a mão quando a solidão espreita na esquina dos meus medos.

Obrigada por serem luz para mim...



sexta-feira, junho 23, 2006

A irmandade das dartas

I remember when, I remember, I remember when
I lost my mind
There was something so pleasant about that place
Even your emotions had an echo
In so much space

Maybe I'm crazy
Maybe you're crazy
Maybe we're crazy
Probably

And I hope that you are having the time of your life...

Crazy - Gnarls Barkley

Quando a manhã não é suficiente para iluminar o meu sorriso, vocês roubam raios ao sol e preenchem todo o meu vazio com a vossa presença radiante. Quando as sombras arrastam os sentimentos aos tropeções, vocês dão-me asas e levam-me para um lugar seguro. Não se escondem da tristeza, não fingem que ela não nos incomoda; acolhem-na no nosso seio e acarinham-na, até que deixe de chover, e então espantam-na com uma mão cheia de gargalhadas. Sim, as vossas gargalhadas... São pérolas de orvalho que refrescam os meus dias, que têm o poder divino de curar. Em vocês, eu saro, eu cresço, eu sou melhor...
Porque nós somos mais do que quatro pessoas unidas pela amizade; nós somos uma verdadeira irmandade. No meu egoísta individualismo, nunca pensei que pudesse estar com alguém todos os dias e ter sempre tanto para dizer e ter sempre tantas saudades e vontade de estar perto... Mas convosco é possível, ao vosso lado todo o tempo escasseia, porque no mundo há um espaço que é só nosso e as nuvens e o sol e as pessoas... Nada o pode perturbar.
O que há de deslumbrante nos nossos momentos é que cada uma de nós, tão diferente da outra, é aquilo que intrinsecamente é, sem medo ou qualquer constangimento. É esse o segredo que trespassa o nosso mundo e que nunca ninguém soube entender, mas que nos une com um laço tão forte que vai para além do tempo e da distância. Nunca há um dedo a apontar, uma atitude a julgar ou aquele risinho que ironiza aquilo que se pensa ser rídiculo; há sempre dois braços abertos, para o bem e para o mal, e um sorriso a transbordar de todos os sentimentos verdadeiros que um ser humano pode albergar.
Vocês são lindas, tão lindas que cada dia vale a pena acordar com um sorriso por saber que vos tenho na minha vida. E pode o mundo desabar, pode o riso rebentar... Vocês estão aí. E juntas vamos dançar a alegria de estarmos vivas, juntas vamos chorar porque o mundo acaba sempre por nos magoar, mas estamos juntas... Profundamente juntas...
Obrigada por tornarem a minha vida tão mais feliz...
* Darta Kitty *

sábado, junho 17, 2006

quarta-feira, junho 14, 2006

Tudo o que te quero dizer...


Não me interessa o que fazes na vida. Quero saber o que anseias e se tens coragem de sonhar com a realização desse anseio.
Não me interessa que idade tens. Quero saber se tens coragem de fazer figuras tolas em busca do amor, dos teus sonhos, da aventura de estar vivo.
Não me interessa quais os planetas que regem a tua lua. Quero saber se tocaste o âmago da tua própria dor, se tens estado aberto às traições da vida ou se te fechaste com medo de sofrer novamente. Quero saber se consegues sentar-te na presença da dor, tua ou minha, sem tentares escondê-la, esmorecê-la ou remendá-la.
Quero saber se consegues estar na presença da alegria, tua ou minha, se consegues dançar loucamente e deixar o êxtase inundar-te, da ponta dos pés à cabeça, sem dizer «tem cuidado, sê realista, lembra-te das limitações do ser humano».
Não me interessa se a história que me contas é verdadeira. Quero saber se és capaz de desiludir uma pessoa para seres verdadeiro para contigo próprio; se consegues suportar a acusação de traição e não traíres a tua alma, se consegues despojar-te de fé e ser de confiança.
Quero saber se consegues ver a beleza, mesmo quando não é bonita, todos os dias, e se consegues alimentar a tua vida com a sua presença.
Quero saber se consegues viver com o fracasso, teu e meu, e ainda assim abeirar-te do lago e gritar à Lua Cheia de prata: «Sim!»
Não me interessa saber onde vives ou quanto dinheiro tens. Quero saber se consegues levantar-te, depois de uma noite de dor e desespero, cansado e dorido até ao âmago, e fazer o que for preciso para alimentar os teus filhos.
Não me interessa quem conheces ou como aqui chegaste. Quero saber se enfrentarás as chamas comigo, sem dares um passo atrás.
Não me interessa onde, o quê ou com quem estudaste. Quero saber o que te sustenta, por dentro, quando tudo o resto desmorona.
Quero saber se consegues estar a sós contigo mesmo e se verdadeiramente aprecias a tua companhia nos momentos vazios.

__ Sonhador da Montanha Oriah, Ancião Índio

sexta-feira, junho 09, 2006

No fim, está tudo bem...

Se ainda não está tudo bem...



É porque ainda não chegou o fim.

segunda-feira, junho 05, 2006

Still [nine]teen

E de repente eis que chega a inevitável passagem para o mundo dos adultos. Não, não é uma perspectiva dramática. Acaba-se o teen a finalizar os nossos actos, a desculpar os nossos erros, a preencher a nossa imaturidade. De um momento para o outro apercebemo-nos das expectativas com que a sociedade nos constrange e que não nos quer ver frustrar. Esvanece-se em nuvens fugidias de passado o tempo das birras e do conhecimento imprudente do mundo. E para mim... O que será que me espera agora? Serão estes os «loucos anos 20»? Será o desejado encontro comigo mesma, com aquilo que sou e que passei anos na arriscada demanda de descobrir?
Se chegou ao fim a idade dos porquês, porque é que ainda pontuo a minha vida com interrogações? E se eu não quiser crescer, se quiser continuar à procura da terra no nunca? As dúvidas multiplicam-se nas encruzilhadas, como se nada tivesse sido feito para ser compreendido. Ou serei eu, eternamente dividida entre o que sinto e o quero, o que acredito e o que espero, o que amo e o que odeio e tudo o que flutua nesse entremeio e não sei definir? Serei eu, almejando um impossível infinitamente próximo, desacreditando as certezas que vou construindo apenas pelo prazer de recomeçar a procurar? Talvez eu só não queira chegar... E o que é que isso tem de tão errado?
Para trás fica a mágica consciencialização do mundo, como que abrindo os olhos lentamente enquanto nos apercebemos do universo que nos rodeia, tocando os limites da vida, os extremos da felicidade e do desespero e, por fim, concluindo que na nossa existência humana há tanto de divino como de animal. Dói mudar de pele, ficar a ver os atropelos do dia-a-dia dilacerarem-nos a inocência, abandonar a redoma da infância para nos lançarmos num mundo que não nos pode prometer nenhuma segurança... Demora e dói estarmos em nós. E, por outro lado, é tão doce fundirmo-nos numa existência comum mas que para nós, a cada passo, tem o sabor deliciosamente atraente da novidade...
Só que agora as minhas tempestades serão sobre um chão firme. Agora quererei o curso, um carro, um emprego, uma relação... E se eu não...? Agora apetece-me virar tudo isso ao contrário e continuar à procura de mim! Apetece-me mudar, viajar, fugir.... Agora apetece-me correr e tropeçar e aprender novamente a cair. O meu caminho não está feito, não há passos para eu seguir e eu quero que ele seja à minha maneira. Por isso, deixem-me ser eu. E não me exijam nada, nem respostas, nem futuro, nem o horizonte que eu ainda não quero alcançar. Só se houver mais e mais e mais... Eu quero um pouco mais de adolescência, a inconsciência de não saber, o pecado irascível de querer, um caminho vasto para percorrer. Eu só quero ser eu, intrinsecamente eu e mais nada.

terça-feira, maio 30, 2006

Se te amo...


Saberás que não te amo e que te amo
pois que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem a sua metade de frio.

Amo-te para começar a amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.

Amo-te e não te amo como se tivesse
nas minhas mãos a chave da felicidade
e um incerto destino infeliz.

O meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.

Pablo Neruda

segunda-feira, maio 22, 2006

Quem és tu de novo


Quando a janela se fecha
E se transforma num ovo
E se desfazem estilhaços
De céu azul e magenta
O meu olhar tem razões
Que a razão não frequenta
Por favor diz-me quem és tu de novo

Quando o teu cheiro me leva
Às esquinas do vislumbre
E toda a verdade em ti
É coisa incerta e tão vasta
Quem sou eu para negar
Que a tua presença me arrasta...
Quem és tu na imensidão do deslumbre?

As redes são passageiras
Arquitecturas da fuga
De toda a água que corre
De todo o vento que passa
E quando uma teia se rasga
Ergo à lua a minha taça
E vejo nascer no espelho
Mais uma rua

Quando o tecto se escancara
E se confunde com a lua
A apontar-me o caminho
Melhor do que qualquer estrela
Ninguém me faz duvidar
Que foste sempre a mais bela
Por favor diz-me que és alguém de novo...

Jorge Palma

“Quem és” é uma pergunta tão indiscreta quanto traiçoeira e... Será que algum dia me poderás responder? Talvez eu não queira uma resposta. Tu és aquilo que eu vou descobrindo, no intervalo dos risos, aos tropeções, umas vezes confiante, outras insegura... Tu és o que eu vejo em ti, como o reflexo de um lago sem fundo, uma prenda que se desembrulha devagar, saboreando o prazer antecipado da expectativa. Todos nós já nos desiludimos, todos acreditámos naquilo que julgámos ser um céu e no final de contas eram só estilhaços azuis e magenta... Todos guardamos a verdade secreta numa concha esquecida por entre as algas das memórias e todos desejamos a corrente que venha despojar-nos dos corpos mortos, que nos liberte a essência e nos aponte o caminho melhor do que qualquer estrela. Nenhum de nós sabe quem é. Por isso, não respondas. Deixa que o tempo, como o mar, traga para terra os despojos de ti. Eu não vou procurar desenterrar as tuas lendas, nem mergulhar em águas que se podem revoltar... Estou cansada de naufrágios. Não roubo a tua história, aceito os vislumbres que dela me dás e vou construindo uma ideia de ti, com prudência, com a segurança de seres autenticamente tu, porque, se um dia deixar de haver a tua presença, não quero encontrá-la despida de alma. Dou-te a garantia de que vou ver em ti alguém de novo e de mim... aquilo que estiveres disposto a abraçar, a desvendar com a mestria cautelosa de quem descobriu a importância de esperar. Porque nos reinventamos cada dia e somos sempre alguém de novo, é perda de tempo tentarmos prender-nos num perfil, numa imagem, numa definição que nos torna escravos de alguma verdade que não pedimos para integrar. Eu não sei quem és, quem sou... Sei que quero procurar. Não é que isso que verdadeiramente importa?

sábado, maio 13, 2006

Redescobrir a normalidade


Foram tantos os anos em que eu achei que a normalidade era uma doença que eu devia a todo o custo evitar... Tantas vezes me desviei dos padrões e estimulei a diferença em mim, entediando-me com a rotina e amaldiçoando a monotonia. Venerei as loucuras, os saltos no vazio e tudo aquilo que poderia arrancar alguém à multidão e fazê-la brilhar, estrela solitária num céu de diamantes. Mergulhei na história dos Van Goghs e Fernandos Pessoa do Mundo, segui atentamente os passos dos revolucionários, admirei profundamente quem primava pela diferença e fazia os pilares da sociedade estremecer.
Mas agora, depois de virar o mundo ao contrário, dou por mim a redescobrir a normalidade com um estranho prazer. Reencontro-me no caminho de todos os dias e saboreio a alegria de uma vida comum, que para mim já não significa o mesmo que vulgar. Deixo-me dissolver na espuma homogénea da multidão, envolvida pelo conforto do anonimato. A placidez da previsibilidade pela primeira vez não me aterroriza. Aprendo a amar o que me está ao alcance da mão, dou por mim a “desejar impossivelmente o possível”, tomando consciência que construi um abrigo à minha imagem e que não quero sair de lá, não para já. Entendo a beleza da simplicidade, das pessoas que passam por mim e não cativam a minha atenção, das pequenas coisas que estruturam o meu mundo e que eu não conseguia ver por trás das cores berrantes que pintava num horizonte sempre inalcansável.
Porque para deixar a minha alma voar preciso de ter os pés assentes na terra, porque a liberdade começa em mim, porque onde quer que me leve o fascínio estas são as minhas raízes... Quero amar o meu dia-a-dia, deliciar-me com tudo o que sempre esteve por perto, conhecer os voos do meu doce quotidiano sem pretensões de maior, entregar-me aos braços que se abrem sem os olhos turvos de sonhos irrealizáveis e outras quimeras. Só assim posso sentir-me em mim, porque me cansei de buscas infrutíferas. É um sentimento novo, estou embriagada dele. E hoje digo sem medo: dêem-me aquilo que eu posso esperar. Desta vez eu não fugirei... Prometo, eu fico.

sexta-feira, abril 21, 2006

Letting go

Don’t be afraid of letting go...

Há minha volta pressinto a ânsia triste de todos aqueles que se habituaram a ver um rapaz bonito e alegre na televisão e que agora não sabem lidar com o vazio que ele deixou. Francisco Adam partiu. E até eu me sinto incomodada perante a ideia, embora a única familiaridade que tinha com ele era a de ver aquele rosto traquinas aparecer e desaparecer no écran durante uma ou outra sessão de zapping. Não é a perda que me preocupa, como os Expensive Soul dizem na música que - segundo me elucidaram - precedia as suas aparições na novela “falas disso, esquece isso”. As pessoas aproveitam o pretexto para chorar as suas mágoas, lamentam a vida que se esvaiu e que era desconhecida mas que lhes entrava em casa todos os dias através da pequena caixa mágica, fazem disso mote de conversa durante umas semanas e esquecem. Ironicamente, a mesma música continua “pensas que eu vou ficar por cá muito mais tempo, demasiado tarde, por isso aproveita este momento”. Francisco Adam foi uma pequena estrela que se apagou ou que deixámos de ver, mas que vai continuar a arder no coração de quem verdadeiramente o conheceu durante muito tempo. É essa a sua eternidade, a eternidade de todos nós...
O que mais choca em tudo isto é a juventude dele, como uma flor que é colhida quando ainda está a desabrochar. Não estamos preparados para perder alguém nesta altura, não conseguimos conceber que isso possa sequer ser possível. Sei bem a sensação de imortalidade que temos quando somos jovens, como se uma bolha invisível à nossa volta nos protegesse de todos os males do mundo. Eu bebo actimel e isso não impediu que naquela noite eu sentisse a vida escorregar-me por entre os dedos. Passaram 4 meses, mas não esqueço...
Não me parece que seja inconsciência. Simplesmente, a ânsia de abraçar o mundo, de o sorver, de alcançar a plenitude de cada momento é um apelo mais forte do que a prudência, que só o tempo traz. Nada nos acontece porque ainda temos muitos projectos, porque ainda queremos viajar, casar, ter filhos... Ainda pensamos tirar o tal curso de pintura, lutar por aquele trabalho com que sonhamos desde miúdos, comprar uma casa à beira-mar onde envelhecer... E é verdade que esse optimismo nos protege... A maioria das vezes, mas nem sempre.
Posso dizer que renasci, pelo menos é assim que sinto. Por um segundo, pensei que tudo estava perdido e dei-me conta de como amo esta vida. Foi um segundo, uma distracção por excesso de confiança, que paguei com sangue e lágrimas. Mas fui poupada e, de cada vez que fecho olhos e recordo a escuridão que me engoliu naquela noite sem estrelas, sentindo o medo tão entranhado na minha pele, agradeço por ainda estar aqui.
Que a morte do Francisco sirva para vos lembrar da fragilidade da nossa humanidade. Aproveitem o dia, cada dia, não adiem sonhos, não abdiquem do presente em prol de um futuro que é sempre incerto. Mas não se esqueçam, nem por um momento, que a vida é o nosso bem mais precioso e delicado e que por isso devemos protegê-la, mantê-la, cuidar dela. Porque “todos os momentos são brilhantes diamantes”...

terça-feira, abril 18, 2006

Juventude (em nome da Amizade)


Sei de cor cada lugar teu
Atado em mim
A cada lugar meu
Tento entender o rumo
Que a vida nos faz tomar
Tento esquecer a mágoa
Guardar só o que é bom de guardar

Pensa em mim
Protege o que eu te dou
Eu penso em ti
E dou-te o que de melhor eu sou
Sem ter defesas
Que me façam falhar
Nesse lugar mais dentro
Onde só chega quem não tem medo
De naufragar

Fica em mim
Que hoje o tempo dói
Como se arrancassem
Tudo o que já foi
E até o que virá
E até o que eu sonhei
Diz-me que vais guardar e abraçar
Tudo o que eu te dei

Mesmo que a vida mude os nossos sentidos
E o mundo nos leve para longe de nós
E um dia o tempo pareça perdido
E tudo se desfaça
Num gesto só

Eu vou guardar cada lugar teu
Ancorado em cada lugar meu
E hoje apenas isso
Me faz acreditar
Que eu vou chegar contigo
Onde só chega quem não tem medo
De naufragar

Mafalda Veiga



É assim a juventude inebriante, em todas as suas tonalidades, na musicalidade das gargalhadas, cujos ecos se repercutem pelo resto da vida. É nestas memórias que a minha alma vai pousar quando o Outono da vida chegar, afastar as teias de aranha e o pó dos anos, sacudir-lhes a ternura, protegê-las das mágoas que a vida vai acumulando.
Neste momento dos nossos percursos, as incertezas são promessas de um futuro risonho, a insegurança é arrastada pela corrente das palavras e dos sorrisos, os medos e as mágoas têm a insignificância de graus de areia perdidos num deserto de sonhos. Ainda há tempo... Há sempre tempo... Para concretizarmos as nossas ambições loucas, os nossos segredos obscuros... Há tempo para mudarmos o mundo.
É esta a magia da vida... Os braços abertos, os sorrisos sinceros, os elogios espontâneos... É assim que vocês são, à parte as dores do mundo, e eu delicio-me na pureza da vossa entrega, na leveza dos vossos passos, na luminosidade dos laços que nos unem. A amizade agora é tão fácil, basta acreditar. E vocês acendem sóis na noite; no fascínio da ternura, lambem lágrimas à solidão; cantam e dançam os encontros e desencontros com a paixão de quem tem motivos para festejar. Somos D. Quixotes, de olhar preso no horizonte e os moinhos de vento fazem-nos rir, porque a vida é este momento, este em que estamos juntos e nada mais importa.
Nas minhas pegadas estão escritas as tardes ao sol, dissolvidas na placidez alegre da vida da vizinha e num refresco; as noites de futebol passadas entre um café e outro; os passeios junto ao mar, falando de estórias caladas pela nostalgia dos amores perdidos e de projectos de um amanhã que parece tão longínquo; os cafés fumegantes, os acordes de uma guitarra e uns pingos de chuva que testemunham romances nascidos para não se consumar; madrugadas alucinantes pelas ruas, braço dado, rumo à torpidez embriagada das tascas; manhãs que se levantam e nos apanham desprevenidos à saída de um bar qualquer, sem nos despedirmos da noite que passou; aulas partilhadas na solidariedade do cansaço e dos bilhetes trocados à socapa; sonos cúmplices; conversas esquecidas por entre o fumo de um cigarro... Pegadas que falam de vocês, das verdades que eu encontrei na simplicidade da vossa amizade.
É esta a minha juventude, que me faz adormecer de exaustão ao final do dia e acordar incondicionalmente com um sorriso no rosto. É este o sal dos nossos dias. Obrigada, meus queridos, por chegarem comigo “onde só chega quem não tem medo de naufragar”.

quinta-feira, abril 13, 2006

Fast food

Deixa-me rir

Essa história não é tua

Falas da festa do sol e do prazer

Mas nunca aceitaste um convite

Tens medo de te dar

Não é teu o que queres vender

Não...

Deixa-me rir

Tu nunca lambeste uma lágrima

Desconheces os cambiantes do seu sabor

Nunca seguiste a sua pista

Do regaço à nascente

Não me venhas falar de amor...

Pois é, pois é

Há quem viva escondido

A vida inteira

Domingo sabe de cor

O que vai dizer segunda-feira

Deixa-me rir

Nunca auscultaste esse engenho

De que falas com tanto apreço

Esse curioso alambique

Onde são destilados

Noite e dia

O choro e o riso

Deixa-me rir

Ou então deixa-me entrar em ti

Ser teu mestre só por um instante

Iluminar o teu refúgio

Aquecer-te essas mãos

Rasgar-te a máscara sufocante

Pois é, pois é

Há quem viva escondido

A vida inteira

Domingo sabe de cor

O que dizer segunda-feira

Jorge Palma

É triste a nossa sociedade de plástico, onde trocámos o amor pela paixão e a paixão pelo desejo. É triste acharmos que os sentimentos se consomem num leito, deitarmos ao vento verdades que se esqueceram de acontecer, porque quem as diz não as sente e quem as ouve não quer acreditar nelas. É triste termos esquecido a intensidade dos beijos, termos fechado os nossos olhares sob a cortina dos medos e das mágoas. É triste deixarmos as horas a queimar numa apatia feita de nada, só porque desistimos de procurar. Despimos a vida de noite e dia, de choro e de riso. Para nos protegermos... Deixamos de viver.

Por isso, deixa-me rir. Tu não sabes o que é rasgar a alma e deixar o coração despedaçado na calçada. Tu não sabes qual é a cor dos dias quando todas as estrelas se apagam. Tu não sabes o que é querer alcançar o infinito e esbarrar contra os horizontes claustrofóbicos da realidade. Tu não sabes falar de amor...

Ousa respirar por detrás dessa tua máscara, ousa verter a transparência do teu sorriso nos lábios de alguém, por uma vez... Só por uma vez... Ousa seres tu, exigir amor em troca de amor. Ousa ter asas, estar sedento de ternura e verás que isso não é loucura. Ousa viver!