domingo, novembro 12, 2006

Diz-se por aí...

Diz-se por aí da vida os maiores disparates. Como se se pudesse encartilhá-la e vendê-la às lições! Que é do grito dos pássaros, pergunto-me eu, do leve sibilar das asas roçando contra o tecido dos vestidos? Aos olhos da diferença formal a que nos prostramos, somos todos irritantemente iguais, formiguinhas correndo de um lado para o outro, tentando açambarcar cada pedra e pauzinho com os quais nem sabemos bem o que fazer. É tanta a inutilidade obstruindo-nos os poros que um grão de areia no sapato errado atiça logo a fúria dos deuses, eis que se urge a tempestade e lá andamos nós a correr para o psicólogo, que é um ser tão confuso e indeciso como nós. Que é do azul irrompendo dos dedos, das conversas que enganam as horas e, de tanto se darem aos ouvidos atentos, deixam os lábios a doer? Um dia, damos por nós confortavelmente sentados no nosso trono de pedras e pauzinhos e sentimos que, para além da intempestiva majestosidade da muralha que construímos à nossa volta, há um ser frágil, que nunca tivemos tempo de conhecer. Nesse momento, amaldiçoamos a vida que não soube esperar por nós, os anos que se consumiram na febre de tentar ser alguém. Ser alguém. No novo dicionário dos afectos, ser é sinónimo de ter. Que é das discussões acaloradas, dos abraços apertados, das lágrimas sinceras lavadas por entre o granito das ruas, porque não se escolhe quando vai chover? Porque nos escorrega o tempo entre os dedos e a materialidade das coisas nos vai iludindo o coração desassossegado? Há uma sucessão de perdas na perpétua insatisfação que nos corrói os nervos, a frustração da espera por coisa nenhuma, um vazio insuprível nos passatempos como ópio para a solidão. Essa solidão que nos vem colada às penas, como um brasão, uma herança de rostos desconexos espreitando por entre os segundos desprevenidos do nosso estar. Efectivamente, não gosto de aparências. Representamos as pessoas que somos e que queremos ser, mas quanto há de autêntico em cada gesto? Casualmente descuidado, levemente despenteado... É como nos tivessemos transformado de repente nos nossos próprios, permanentemente atentos e profundamente aborrecidos, editores de imagem. Que é das longas viagens pela Europa, chinelos e mãos nos bolsos, o estômago revolto na sede do conhecimento? Temos que representar para disfarçar a lacuna de tudo o que não sabemos sobre nós. Porque a televisão nos poupa o trabalho de estarmos connosco. Temos mais que fazer. Deus nos livre do ócio! Temos que nos sentir úteis, é uma certa forma de status. Que é dos pensamentos soltos, voando sobre o papel, das eternas filosofias construindo explicações improváveis sobre o universo, das angústias profundas, das insónias de paixão que servem de berço para doces sonetos infelizes? Somos todos colagens. Um pouco daquela actriz, mais um pouco do outro jogador de futebol e até do humorista a que achamos uma certa piada. Apetece-me arrancar pedaços, rasgá-los com os dentes, quando um deles sangrar, saberei que é genuinamente meu. Estou cansada de sorrisos plásticos, de espelhos que se reflectem infinitamente, de todos os complexos aparelhos que montámos à nossa volta para nos esquecermos de procurar quem somos. Quero o sujo e o feio, o perdedor e o errado, porque fazem parte da vida. Quero atravessar os espelhos que se imitam e descobrir a que sabe a verdade ao contrário. Perceber a humanidade descolando-se de um olhar que o botox, à revelia das leis do universo, tornou eternamente jovem, encontrar o charme oculto num nariz imperfeito, na madeixa fora do sítio e na voz engasgada. Quero um punhado de pensamentos desordenados, um coração sobressaltado, um sono desassossegado. Que é dos olhares que se demoram nos trilhos já tantas vezes percorridos de um rosto, dos abraços que engavetam recordações, passes de mágica, a alquimia dos sentidos? Quero a fúria do mar debatendo-se contra a areia molhada dos afectos, uma guerra de rendições e de suspiros tolos. Quero ver o mundo cor-de-rosa, andar de pernas para o ar, quero encontrar a vontade desesperada de estar contigo, voltar para casa com os lábios cansados de inventar conversas, recriar teorias improváveis para o universo e ficar só a imaginar que todo ele pára para testemunhar esse momento. Sê a linha imperceptível dos meus pensamentos, rouba-me aos segundos um pouco de atenção, desperta-me da nostalgia da espera por coisa alguma, como febre doentia para os meus sonhos ébrios, fascina-me, prende-me e não me deixes dormir. Quero sentir a autenticidade violenta dos beijos tocando as teclas de aço dos meus sentimentos e ficar a ouvir-te desafinar a melodia de um amor imperfeito. Vou morder o isco e sair impune, pecando a ousadia de me sentirviva, profundamente viva, imprudentemente viva.

4 comentários:

Anónimo disse...

Obrigado por mais uns minutos de leitura deliciosa ... e pela reflexão que as tuas palavras me "obrigam" a fazer...:)

bj G

pecado original disse...

Diz-se por ai tanta coisa... e tu constinuas viva :D

Anónimo disse...

nao quero mais sorrisos de plastico...tao bom que os teus textos voltaram*

Light disse...

Queres a vida e foges da hipocrisia,gosto de gente assim,como tu,doce Samanta!