segunda-feira, setembro 25, 2006

Não partas

Olho para ti... O peso dos anos descendo-te nos ombros, o olhar perdido num horizonte longínquo, para lá daquilo que conheço e posso adivinhar. Há quanto tempo os fechaste para o presente?
Leio-te nas pálpebras as estórias antigas, o rasto de ternura das memórias, o palpitar da vida que te deu tanto e agora, quando a esperavas calma e doce, te traiu. Sempre foste de compleição frágil, mas é de ti forte que eu me lembro... Da seiva que te corria no corpo, as mãos hábeis contendo todo o ímpeto viril de quem soube moldar um destino a ferro e fogo. Na tua boca, havia sempre espaço para uma palavra alegre, porque a vida não se compadece de tristezas. Não fossem os sulcos de vivências marcados no teu rosto e as pernas já derrotadas pela violência da enxada e terias sido um dos nossos, correndo pelo pinhal atrás de um qualquer gato vadio. Quando, diz-me quando, desceste a cortina sobre a realidade e aprendeste os passos para um mundo só teu?
Ensina-me a porta, na melancolia azeda dos momentos, como ópio para a solidão, eu quero encontrar-te. Só para dizer-te mais uma vez que é o céu que nos escolhe, mas que podemos criar o nosso próprio tempo subjectivo. Quero dizer-te que venceste as batalhas, o frio e o medo. Que soubeste ser homem, pai e avô. Quero dizer-te que não há vergonha no teu Inverno, que há dignidade nas tuas costas encurvadas e na pele como o velho tronco de uma árvore, dormitando na tranquilidade de quem já ocupou o seu lugar no mundo. Tiveste que ter força bruta para romper a terra, persistência para resistires aos ventos, fragilidade para procurares o sol e doçura para alimentares os teus frutos. Conseguiste e tudo isso nos orgulha, todos nós que nascemos de ti.
Não nos deixes agora. Não sem te dizermos a alegria de nos teres segurado nos braços, empurrado nas caixas improvisadas de bebidas, cortado queijo e lambuzado connosco de melão que tu próprio arrancavas da terra. Não sem saberes que te amámos e que a tempestade que te fustigou não mudou isso, nem um milímetro. Tens o lugar certo no nosso coração.
Não partas...
A ausência de fotografias deve-se a um problema técnico. Em breve, retitui-las-ei ao seu devido lugar.

sábado, setembro 23, 2006

Regresso

São as asas chicoteando contra a janela fechada dos dias que uma manhã nos sacodem numa viagem turbulenta pelos meandros da vida. É a liberdade a embriagar-nos os sentidos, a juventude a queimar-nos as veias, os ecos da Terra a girar a gritarem-nos desejos aos ouvidos. Partimos, partimos sempre. O mundo lá fora move-se depressa demais e não espera por nós. A sede de experiências arrasta-nos aos trambolhões por rios de risos e de lágrimas. Enchemo-nos de vida, deslumbramo-nos com um ou outro cometa, rasgando suspiros ao céu, mas sentimos sempre o pó do caminho nas mãos e na boca e percebemos que a noite é tão escura ali como em qualquer outro lugar.
Então voltamos... À infância, aos lugares perdidos das nossas remotas recordações. Voltamos, como filhos pródigos, com os olhos secos e o corpo coberto de cicatrizes. Voltamos, sabendo o exacto lugar a que pertencemos. Há em nós um rasto do fascínio que nos abriu as janelas de par em par para receber a brisa do mundo e o profundo conhecimento da nossa alma que, por fim, pudemos tocar. Trazemos na bagagem mil estórias e cansaços, mas queremos é que não nos perguntem nada. Um beijo e um abraço incendiando-nos a ternura, os risos que trazemos no regaço para partilhar, o perfume da casa e das coisas e um caldo que nos aqueça os corações. Viemos sentindo-nos das origens, que sabem quem somos até quando nos perdemos de nós, aceitando um passado que é parte da pessoa que se formou debaixo da nossa pele, descobrindo, surpresos, que sempre amámos a autenticidade dos passos que ficaram para trás, tudo aquilo que a febre do deslumbre nos fez abandonar.
Deixo-me ficar, saboreando o silêncio e a pacatez, deliciando-me com a vida secreta da cidade que antes me parecera tão apática, perguntando-me porque demorei tanto tempo a admitir que a nostalgia do regresso. Volto a casa com a satisfação inconfessável das saudades saciadas, aninho-me no meu lugar no sofá, que já me sabe as formas e se adelga para me receber. Compreendo que a pessoa que vejo no espelho está nua, rasgadas as máscaras da felicidade e da amargura que socialmente incorporam o nosso sorriso, e, ainda assim, sentindo-me tão protegida, vestindo a veracidade íntima de um ser sem pretensões.
Sei que um dia voltarei à solidão da casa vazia, à comida enlatada e às noites vadias. Adoptei o corropio incessante da metrópole como ritmo de vida e algum dia ele há-de arder-me no sangue. Mas também sei que parto com a barriga cheia de um sentimento plácido de doçura, com as mãos a escorrerem carinho e um sorriso maior nos lábios. Sei que levarei este lugar comigo, ainda que em segredo, e que cedo voltarei para me lambuzar de silêncios pulsando vida e de mimos. Sei que esperarei que a porta se abra e tu venhas contar-me as aventuras do dia ou até que te feches num traço mal-humorado, mas que sejas tu. E percorrerei cada passo de volta a casa para te encontrar e para te dizer que, ainda que o vento me insufle as asas e eu largue âncora para destino incerto, é ao teu lado que sou feliz.
Tem a magia de nascer de novo cada regresso a casa...

quarta-feira, setembro 13, 2006

Quatro minutos

Fotografia em www.pages.globetrotter.net/banmona/images/yoga


Hoje aprendi que os mantras da yoga são muito mais do que gestos graciosos que, reflectidos no espelho, enchem o nosso ego de orgulho, mais do que cada gota de suor a lembrar-nos que seremos mais magros, mais elegantes, mais atraentes... Hoje aprendi que os limites do nosso corpo são muito mais acessíveis do que os da mente. Pensamos que somos fortes de cada vez que resistimos às tentações da preguiça, de um doce, mas afinal estamos só a obedecer às pressões da sociedade, marionetas agindo na doce ilusão de viver. À alma, essa que permanece muda e cega perante os holofotes do mundo, não temos acesso. Brilhamos pelo sorriso radiante, pelo olhar magnético, pelas roupas da moda... Mas quantas vezes conseguimos atrair uma atenção genuína por aquilo que temos para dizer, que podemos ensinar?
A yoga, não aquela praticada nos ginásios de luxo ao ritmo dos últimos sucessos do hip hop, a verdadeira yoga, despretensiosa, despojada de colchões topo de gama e luzes que disfarçam as estrias, a yoga pura e dura, dos silêncios intermináveis, dos gestos que importam pelo que são e não pelo que parecem... Essa yoga ensina-nos a persistência de procurar chegar ao fundo de nós mesmos, ao âmago das correntes que nos amordaçam, à origem dos nossos medos, àquilo que efectivamente somos. Assim, sem mais ornamentos.
Quatro minutos... Foram só quatro minutos... Que me pareceram uma eternidade. Só porque nesta sociedade não se ensina ninguém a estar sozinho consigo mesmo. Digo sozinho, não só. Não importa quantas pessoas estavam à minha volta, não havia música, nem televisões, nem computadores ou quaisquer outros gadgets para me distrair... Não havia sequer uma pessoa a passar, uma rua para observar, um semáforo a piscar que me prendesse a atenção. De olhos fechados, estava finalmente diante de mim mesma, enclausurada num momento que sempre evitei. Não levitei, não foi prazer o que senti. Primeiro ruído, um ruído ensurdecedor. Depois toda uma gama de pensamentos disparatados, libertadores, como se todo o “lixo” que venho acumulando no baú escuro do meu cérebro tivesse encontrado uma saída. Ultrapassei o medo do desconhecido, do silêncio e da escuridão que pensava conhecer. De repente, já não sentia o meu corpo, tudo se passava a um nível que conscientemente não dominava, simplesmente assistia ao desenrolar dos meus diálogos calados, apalpando os terrenos novos do meu ser, chegando a planícies desconhecidas de verdades que nunca antes se haviam revelado perante os meus olhos demasiado presos às cores do mundo. Quatro minutos. E tudo era novo neste sítio onde tinha chegado. Tudo o que eu tinha aprendido sobre reflexão, pairando vestida de branco diante de uma janela banhada de luz, havia-se quebrado naquele momento, mas valia tão mais saber agora o gosto sincero das minhas entranhas, sentir-lhe o sabor a sangue e a lágrimas, a risos e suspiros...
Como em tudo na vida, o caminho está cheio de pedras e dói, descer o abismo profundo, olhar o silêncio nos olhos e, com um suspiro profundo de satisfação, deixarmo-nos afundar nos pensamentos que, suavemente, nos deslizam pela mente finalmente vazia das impurezas de um mundo que não sabe quem somos.

Quatro minutos... E tu, sabes quem és?

segunda-feira, setembro 11, 2006

Crush

Fotografia de Martin Roger


Falar sobre amor e ódio, sobre medo e racismo, sobre injustiça e vingança... Falar sobre tudo isso é dizer mundo. O mundo que gira para cada um de nós, entretecendo, quase sem nos darmos por isso, o nosso destino com tantos outros que se cruzam no nosso caminho, por vezes estrelas cadentes perante os nossos olhos mal habituados à escuridão do céu, outras tantas tatuagens que permanecem alheias ao passar do tempo. Atiramos gestos irreflectidamente, como beijos ou como pedras, e nunca sabemos onde vão cair e o estrago que farão. Por vezes, distraidamente, mudamos o ser de alguém num único momento, irrepetível. Só quando soubermos isso, perceberemos que temos o mundo nas mãos. Somos pedrinhas lançadas ao rio, tecendo instantes nas pequenas ou grandes ondas que formamos ao nosso redor, espelhando nelas a nossa alma. No silêncio de cada passo, deixamos pegadas nas vidas que nos rodeiam e o que escrevemos será um dia a recordação que deixaremos para trás. Somos fontes de energia a transbordar, produtos da sociedade e dela absorvemos o cansaço e as frustrações, o altruísmo e a solidariedade. Então que sejamos aquilo que desejamos que os outros sejam para nós.
Algo neste filme sobre a vida no seu estado mais puro me lembra “Favores em Cadeia”, a repercussão impensável de cada uma das nossas atitudes, como um dominó interminável que afecta até o mais longínquo dos seres, ligado a nós por um cordão invisível de afinidades. Gosto assim do dramatismo impudorado de uma realidade que se sabe cruel, mas ao mesmo tempo tão doce, quando a ternura, o amor ou a honestidade encontram o seu lugar num mundo esquecido de amar. No fundo, a primeira frase será sempre a mais importante... O mais doloroso é que todos sentimos o peso da solidão, tão colado aos nossos ombros que colidimos, colidimos a todo o momento, pelo prazer do toque, para nos sentirmos humanos. Em todos nós há um muro à espera de ser derrubado, às vezes basta um olhar, outras vezes é preciso força de leão para levantar uma pessoa das sombras. Mas todos nós - todos, sem excepção - esperamos que uma mão se estenda, que um sorriso se abra e nos mostre que conseguimos ser pessoas melhores todos os dias.
Vê a pessoa pequena e insegura em mim, em cada um, para além do orgulho e da arrogância que me gelaram no rosto. Vê o quanto preciso da tua paciência, da tua compreensão. Não julgues, nós somos as circunstâncias que nos moldaram e tu não sabes como é ser eu. Pensa em como sabe bem o sorriso de um desconhecido na rua, quando alguém que vês todos os dias e mal conheces te tece um elogio ou desculpa os teus erros e te recebe com um abraço sincero. Agora concentra-te na sensação de bem-estar que te envolve e imagina o bem que instantaneamente desejas fazer a essa pessoa. Pensa em como seria bom se isso estivesse sempre a acontecer. Estamos todos ligados, como uma cadeia de peças tocadas pelo vento... O primeiro a cair, arrastará consigo os outros, mas, se nos mantivermos fortes e unidos, seremos uma barreira perante a intempérie. Chama-me sonhadora, eu acredito num mundo melhor.

Vamos colidir, encetar duelos de flores. Sejamos espelhos do que nos deslumbra e enterremos na gaveta dos desperdícios aquilo que nos magoa. Façamos por semear um sorriso em cada dia. Irradiemos luz, por todos os poros, como uma borboleta colorida lançando sonhos. Podemos mais do que algum dia saberemos. Arrisca experimentar...