quarta-feira, outubro 17, 2007






E de repente dói-me o mundo. Sinto o tecto frio das tuas palavras perfurando-me a subtileza dos silêncios que já são tudo menos subtis. São pesados, como murros desesperados contra a parede ignóbil dos nossos medos. Não percebes que as únicas coisas que arranhas são os nós dos nossos dedos? Já tenho as horas em carne viva.




Foi assim de repente que deixei de te conhecer. Viraste os valores ao contrário, desacreditaste os credos que recitavas de cor. Perdeste a fé em mim. Não sei quem és do outro lado da porta cerrada. Não nego a minha culpa. Deambulo pelo corredor vazio, espreitando através do vão das recordações, mas tudo o que encontro é o apito mudo do telefone sem resposta.




Ofende-me o sol que não se compadece deste estilhaçar bucólico tingindo-me as águas. Secam-me as mãos abstémias de gestos. Estou paralisada do medo de não correr e, ao virar da esquina, deixar de te ver. É tanto que te quero bem. Em que língua mais precisarei de o dizer?




Caminho descalça pela relva, sentindo-me viva. Não viva como uma massa de carne agitada pelo pulsar irreprensível do sangue nas veias. Viva, capaz de sentir o mundo e acreditar nele. Sei que vês os cortes ameaçando-me as artérias, sei que só me queres bem. Talvez precises de um pouco mais de vida. Acredita. No mundo, na terra virgem que me aduba os sonhos. Acredita quando te digo que. montanhas e lagos à parte, eu nunca parti de perto de ti. Se não podes ver a magia eterna de viveres em mim...






Acredita.










terça-feira, setembro 25, 2007



Hoje levanto a manhã nas pálpebras, inundando o quarto de dia. Tenho a alma clara, as portadas abertas, os cantos arrumados. Em ti reconheço os contornos de um velho sinal boiando no meu corpo. É natural querer-te, pertencer-te. O meu caminho atravessa as tuas ruas.

[Só hoje sinto-me serenamente perto de mim.]

Em ti, que desconheces a minha cultura, a minha história e a minha herança, que nunca me viste errando pela noite inquieta nem sabes a minha cor preferida, estou inteira. No enleio cerrado das tuas montanhas severas, abraças todo o meu mundo que é tudo e apenas aquilo que posso transportar comigo. Nas teias que me nublavam a razão fui acumulando demasiado pó e frustração. Rasguei-as na ânsia de te alcançar e, na erosão do sangue seco dos sentimentos repisados, a boca soube-me a seiva fresca. Hoje, sob o teu sol, cresço com a força bruta de um fenómeno natural.

[Obrigada.]

És tu a madrugada desperta, um rosto impreciso que desafia os códigos genéticos no autocarro, a conversa no pub regada a cerveja e a nachos, o nome exótico do rapaz na mesa ao lado, mil variedades de queijo e chocolate tentando-me a dieta, uma noite surreal na fábrica abandonada, os passeios junto ao lago e cada beijo que te dou no meio tempo que demoro a adormecer. És tu a coragem de vencer o ridículo, um pouco mais de tolerância. És um punhado de novas palavras todos os dias, excitantes desafios e sensatas lições, incontáveis vitórias.

És o mapa que me leva até mim.

És tu o que sempre sonhei, ainda que tivesses outro nome, outra cor e outra altitude. Hoje não preciso de te perguntar às estrelas.

És tu.



sexta-feira, agosto 17, 2007

Homenagem


Orgulham-me.



Os vossos corações de ossos largos
Que me pariram as asas
E moldaram um sol de plasticina
Que, na vertigem das quedas,
Não me derretesse o azul.

Esses corações
Que explodem em fogos-de-artifício
Desligando a escuridão
Arco-íris de Inverno
Nas lágrimas que vos lambem o sorriso
Que me orgulha
Meu Deus, como me orgulha!

O mais do que sou
É o que deixo em vós.

O vento corta-me as penas
E no voo arranha-me o horizonte
Mas tenho nas células tatuada
A herança genética dos novos mundos

Evado-me.

O mais que tenho
É o que levo de vós.

O olhar melífluo
Pousado sobre o mar
[Eu sei que dói mais ficar]
E nos braços força suficiente
Para o desbravar
[Eu sei que é preciso coragem para esperar]


Meus heróis de alma inteira,
Tudo o que levo na algibeira
É muita sede de mundo
E a certeza de que tenho no vosso peito fundo
O melhor motivo para voltar.

sexta-feira, agosto 10, 2007

Palavras para quê?



Hoje apeteceu-me desesperadamente soltar as palavras, enrugar os sentimentos até os fazer caber na ponta da minha caneta.

Quase violei a ética dos silêncios no pânico de esquecer o som da minha voz. A violenta beleza do mundo que me sacode os passos tortura-me a existência com a certeza de se apagarem a cada virar das horas. [Tenho a alma embriagada de eternidade e a humanidade aprisionada dentro das quatro paredes da lucidez.] É de novo aquela claustrofobia espremendo-me o coração no papel, de novo aquele desejo de escrever esmurrando-me, rasgando-me os poros ao faro do sangue, algo que prove tu és, tu estás. Como se, quando ninguém me pode encontrar, eu não existisse.

Quase verti, quase traí os segredos. Tê-lo-ia feito, não fosse a picada de vazio, precedendo o orgasmo das palavras que consumam as memórias, doer-me o esófago e, no vómito compulsivo das vogais, descobrir que lhes azedo a magia.

Só então percebi a burocracia dos meus textos, submissos, como pedindo licença para acontecerem. Não preciso que me passem um certificado de vivência! Os momentos têm a consistência da minha energia, são carnais e apodrecem.

Mas porque é que isso me há-de importar?

segunda-feira, julho 30, 2007

Fotografar o mundo em mim



Escrevo, porque vivo
É álgebra elementar
Se não escrevesse,
Ainda haveria a minha respiração a embaciar o vidro
E sangue a dar-me corda ao coração
Era ver-me as mãos, descuidadas,
Cravarem-se na saia a cada solavanco de emoção
Tanto faz o sol como a noite mais escura,
E nem que chova ácido e as estações descarrilem,
A paisagem corre nos seus trilhos

[Sem romantismos,
Fantasias ou patéticas poesias]

À hora marcada, trepida e apita nos apeadeiros
E, no frémito das chegadas e partidas,
Embrutece-me o cinzel.

Mas se eu não escrevesse
Tu morrias comigo.

sábado, julho 21, 2007

Apatia


Estava encostada a um canto, os traços da sua beleza vulgar fechados sobre o livro que assentava indulgentemente no joelho, praticando a desapaixonada arte de ser invisível. Sentei-me ao lado, ensaiando um sorriso. Não levantou os olhos [lia Pessoa], não tanto pela concentração como por uma vaga indiferença. Era dona de uma atenção fragmentada, de uns dedos desassossegados amarfanhando as páginas. Foi numa dessas passagens impulsivas que lhe vi as unhas descarnadas, manchadas de vermelho pelo que restou de um verniz barato. Como se tivesse ouvido o meu reparo benevolente, trincou uma delas, dando um inusitado estalido com a língua que me arrancou uma despropositada irritação. Desviei o olhar, o sol tímido desaparecera sob uma neblina diáfana e gélida. Sentindo um arrepio, lembrei-me que deveria ter trazido um casaco. Os comboios chegavam e partiam, as pessoas, na missão inglória de cumprir a sua solene rotina, espelhavam a habitual apatia. Gostava de estações, da confortável sensação de que tudo está no seu lugar e de pensar que quem parte um dia tem que voltar. Dava frequentemente comigo a fantasiar que me levantava e entrava num desses comboios, sabendo que, quando abrisse os olhos no país que me visse chegar, ainda seria eu. Nesses momentos, sentia-me mais vivo, mais lúcido, como se uma lufada de alma soprasse na carcaça seca dos meus átomos.

Olhei para o lado, ela ainda estava lá. Silenciosa e desafiadora, uma gota de água irritantemente suspensa na torneira. Não tinha nada de memorável, era translúcida e fria como uma noite de Primavera. Estava somente distraída do mundo, demasiado anestesiada sequer para lhe contar as horas. Talvez se lhe gritasse aos ouvidos, pensei, e logo a seguir tive a certeza que seria uma perda de tempo. As emoções aborreciam-na e os sentimentos eram um luxo que há muito tinha empenhado junto com o ouro que a avó lhe ia dando pelos anos, prendia-a apenas o infinito tédio de estar viva. Devia conhecer-lhe o zumbido arrastado, porque nem olhou para o relógio. Quando o seu comboio chegou, levantou-se sem barulho e sem triunfo, enfiando o espesso livro na carteira e desapareceu atrás de uma porta ferrugenta.

Não a voltei a ver. Nessa noite, fiz uma mala apressada e os primeiros raios de madrugada, revelando as manchas vivas que os pósteres deixaram na tinta desbotada da parede, encontraram o quarto vazio. No momento em que entrei naquele comboio, era eu a minha paisagem em movimento e o mundo pulsava nos estremeções do arranque debaixo dos meus pés. Foi como se tivesse saltado para a tela, assistia finalmente à minha própria história. E o medo, pensei com espanto, era sangue espraiando-me nas veias uma espécie de humanidade, não a dos ossos e dos tendões, mas a de uma eternidade sorvida no debater dos instantes que nos encaminham para a morte. A minha vida é uma obra de arte.
Não a voltei a ver, nem a ruminar minutos em estações citadinas. Nesse dia lembrei-me do tempo perdido que tinha para resgatar.

quinta-feira, julho 05, 2007

light |up

Ao longo deste ano e meio, tenho vivido através do On my own e crescido com ele. Nas suas origens está um momento exacto, umas costas empedernidas de concentração, um olhar aguçado e o tiquetaquear inquieto dos seus dedos no teclado. Foi um parto simples e o poema nasceu branco e sombrio, fruto natural de uma gestação apaziguada. Foi-me entregue com um abraço amigo e ele, que já navegava pelos meandros encantados da blogosfera, soprou a lufada de ar fresco que haveria de içar as minhas velas

- Faz falta um espaço teu.

Desde então, tenho reescrito a minha história e tantas outras e descoberto a cada dia o sublime prazer de brincar com as palavras. Fascinei-me pela infinita possibilidade que é o mundo dos blogs, com tudo o que tem de solidão e de partilha, um espaço privilegiado de contacto com a realidade. Não posso negar, estou viciada. O On my own ganhou vida própria e uma personalidade que não se verga a todas as minhas vontades... Mas há mais, outros voos e outros destinos, pelo que tenho hoje o prazer de inaugurar o novíssimo






light up

Substancialmente mais leve, o light up não engorda, nem tem contra-indicações. Criei-o para abrigar e divulgar os pequenos prazeres da vida, complementando com um rasgo de sol o lado lunar [e tão acarinhado] que o On my own continuará a ser.


Bem-vindos a um novo conceito de lazer…

Em http://www.lightedup.blogspot.com/

quinta-feira, junho 28, 2007

Em breve...




Um novo espaço.

segunda-feira, junho 25, 2007

Solidão


Trazia na mala, junto da maquilhagem, uma dúzia de desejos e caprichos, que lancei na folia de uma madrugada sonâmbula, balões coloridos cruzando a noite incapaz de adormecer. Dei sorrisos de graça com uma brandura festiva, apertei mãos, carpi sonhos estilhaçados e vi clarear uma nova oportunidade de ser feliz. Mas já não pude, na minha ignorância desperta, assistir ao fogo do telhado, bramindo vivas à cidade, sem pensar em ti. Onde estarias, na devassidão da multidão enrugando o granito das escadas que te consolam a memória dos afectos? Em que pensarias, no intervalo infinito das contrações do teu coração? Que música louvaria as pétalas mortas da tua solidão?
Nunca antes, mimo triste, te vira realmente. Naquele dia, enquanto as pálpebras te descaíam a mais profunda lamúria, o sorriso ficou-te pendurado no canto dos lábios. Quando me viste olhar-te, a boca arredondada de espanto, a tua mão abriu-se devagar e a marioneta caiu sem barulho no chão frio. Depois só um espasmo aflito e o teu vulto arrefecendo no meu retrovisor. Matei-te a tristeza indecente, esborratando-me o pulsar estrelado, mas o teu olhar enevoado perseguiu-me pelas ruas entorpecidas como que para me lembrar que a noite tem outro rosto.
Foram marchas e flores ao bom sabor da euforia popular e pessoas por todo o lado, galgando as horas que teimavam em não passar. Risos, namoricos, o elogio fácil e o provérbio a espreitar de uns lábios distraídos. Foram sonhos partilhados, no conforto de um encontro anónimo. Mas de manhã, quando o silêncio inundou as ruas desertas, a cidade foi de novo só tua. É ela a única que te conhece, para lá da máscara e do gesto desfeito, amante saudosa enlaçando-te nos braços vazios.
[No brilho vago do teu olhar, ia jurar que vi surgir, insurrecto, um sorriso.]
Pontapearás as latas vazias, vestígios descarados da alegria alheia, e guardarás o fato. Sem que nunca to tenham dito, sabes como se tivesses vivido mil vidas, toda a festa é efémera. Real é a conjugação de átomos que te agita as células num vívido estar em si e isso, esse deambular vagabundo da carne insatisfeita, é um ponto cardeal igual a qualquer outro debaixo do sol.
Hoje o dia é teu.
Resolverei o mais brevemente possível os problemas técnicos de formatação para devolver às palavras o silêncio e os suspiros e ao leitor o prazer dos espaços vazios. As minhas desculpas. Sam

quarta-feira, junho 13, 2007

Nunca te esqueças...

Não distingo ao certo o momento, que pensamento dissecava no vago processo de queimar quilómetros, mas ia jurar que acertei na escala, meio tom acima da última vez que a trauteei no banco de trás do teu carro. Hoje eram os meus dedos a tamborilar no volante, tecendo o ritmo dos versos. Quando a música parou, não soltei a gargalhada do costume. Será que ainda te lembras do que vem a seguir?

Ainda vejo o velho brilho no teu olhar gasto de histórias e o sorriso descaído não falseia as notas vibrantes da tua voz. Como eu queria que erguesses esses ombros vergados pelo peso do cansaço e, libertando o presente amarrotado, me provasses que, para os sonhadores, há mais do que uma seca e encarquilhada desilusão. Peço-te que me desmontes a realidade depurada e, pela primeira vez, me fales de um rio que no fim encontra o mar.

Lembrei-me de ti a sépia, como se quer das recordações felizes. Houve tempo para os batidos de gomas, para as excursões ao carro das cobras, quando as árvores ainda não tinham cedido à sede do consumo e eu me permitia fantasiar. Era tudo grande no nosso mundo, do tamanho que a imaginação nos concedia. Insurgimo-nos contra os finais felizes, desmoronámos castelos de cartas e escolhemos um naipe mesmo à nossa medida. Hoje tu ganhaste tudo a ases e eu tenho a minha sequência traçada, mas já não me sentas no teu colo, aborrecendo-me numa terna letargia, enquanto me falas com simplicidade sobre a vida. Do manual de sobrevivência que me escreveste, comprovei cada teoria à custa de esfolar os meus próprios joelhos. Sabias que o faria, que te imitaria. Mas nem nos mais loucos desvarios admitiste que um dia fossemos realmente tudo aquilo que sonhámos para nós.

Posso descrever-te esperando-me, ardendo cigarros na impaciência de não me ver chegar. Ainda guardas o meu quarto junto às estrelas? Nos projectos audazes que ias comentando com entusiasmo, isso bastar-nos-ia. Uma casa envidraçada, uma tela vazia debruçada sobre um cavalete e alguns acordes de jazz acariciando o silêncio esponjoso e imperturbável da serra. Herdei essa maneira minimalista de desejar e a tua própria indiferença a uma qualquer categorização. Sempre te conheci as mãos abertas, agradecidas para com o que a vida pousa, abstinentes na ânsia de agarrar o que quer partir. E só agora, que a poeira já emperrou os laços, vejo os punhados de solidão crispados nas rugas que te documentaram o passar dos anos.

Não me esperes para te ir resgatar do tédio dos sonhos consumados, estou com pressa de desatar os meus. Na tua mão só pegarei quando escolheres redefinir a tristeza. Então, desenharemos juntos um novo mapa do tesouro, mas desta vez teremos o cuidado de o deixar onde alguém o possa encontrar.

Só nunca te esqueças de me falar de amor…

segunda-feira, maio 28, 2007

Um outro verão

Anoto no canto do guardanapo os silêncios para não me esquecer das palavras que já disseste. Parece tudo feito à medida, a tua fúria e o meu cansaço. Afinal, há um tempo certo para partir. Não me lembro de me ter virado para acenar.

Deitei fora o medidor de passos e a bola de cristal, o velho globo riscado a giz e as bússolas que nunca me orientaram. Fiquei com a agenda pelo pequeno prazer de a saber vazia. Um dia, será a falível memória o único resquício do meu caminho e, então, poderei docemente trair-me, recordando uma lealdade que nunca tiveste e que eu aprendi a não te guardar.

Incomoda-me ouvir pingar lamentos no sótão atulhado, como se entoassem uma espécie de tristeza, por isso arrasto os móveis até arranhar os sentidos. Até ao sangue secar nas veias, até as palavras pararem de acontecer. Às vezes, parece-me que vai tão mais de mim naquilo que não digo, nas entrelinhas do meio segundo em que olho para ti e te esqueço. Sento-me e baloiço na ténue vertigem de saber que ainda posso saltar, sentir-te o chão esmurrar-me os joelhos, e que não quero, porque a dura verdade que me traz incerta na tua vida é que eu sempre amei mais a liberdade do que te quis a ti.

Deixo-te ir. Como se nunca tivesse querido que fosse para sempre. Passo impune, incólume às ridículas promessas que o delírio das insónias nos consumiu. Fomos mais, muito mais. Mas as nossas ruas deram sempre em becos sem saída e cedo o soubemos. Há muito que nos despedimos, um acordo tácito que o teu olhar pardo não me desmentiu. Por cima do ombro, adivinho-te o gesto inacabado, suspenso no tempo indeterminado que demorarei a voltar. Recuso-me a olhar. Há em mim mais, muito mais. Um dia, voltar-te-ei a encontrar.

quinta-feira, maio 03, 2007

Perdidos e achados


Do que mais me lembro é de aquele ar de criança espantada, o batom cereja contornando-lhe a boca arredondada e os olhos, de um impossível tom de azul, arregalados. E, ainda assim, os pés que, numa provocação ingénua, lhe pingavam lama no vestido branco falaram-me mais acerca dela, das contradições que lhe prendiam o cabelo num penteado aprimorado, da contrariedade que a mantinha, obstinadamente, presa a uma infância que já ficara para trás.

[Houve quem me dissesse que haveria de a compreender.]

Ela tinha sonhos, como qualquer pessoa os tem. E estava munida de uma coragem arrogante para os perseguir. Ao egoísmo possante que a beleza jovem lhe permitia chamava amor próprio. Pensava, a pobre pequena, chegar a um acordo confortável com a vida que lhe abriria a porta para uma espécie de felicidade. E, no entretanto em que a intempérie lhe varria as paredes do encantamento, ia tentando pintar o cimento estalado com os lugares possíveis dos sonhos remendados. Inalou durante tanto tempo a cinza dos desejos que o presente ia queimando que, um dia, deu por si sufocada de frustração. Ela lutou, dias a fio, para, à socapa do nevoeiro, não perder de vista a outra margem, aquela dos dias felizes, ensolarados de amores correspondidos e de ambições nunca tolas demais. Mas todo o tempo esteve cega para o horizonte dentro dela, nunca pôde, sem o toque da inquietude, sentar-se numa cadeira e precipitar-se despudoradamente, até que o estômago se contorcesse, na estonteante sensação de existir. Não, ela nunca percebeu que cada lugar vazio esteve sempre cheio da sua presença, que as pontas mal atadas das pessoas que lhe atravessaram o quotidiano a prendiam mais à vida do que o nó irrepreensível que a amarrava àquelas que já a haviam deixado. Ela nunca soube que não há alquimia que dos sonhos faça realidade, porque a magia está em saber ser feliz com a verdade.

[Houve quem me dissesse que haveria de a compreender.]

Talvez ela se pudesse ter desfeito das mobílias velhas e pesadas que lhe atravancavam os sorrisos, quiçá plantado algumas amizades que veria morrer. Talvez ela tenha gritado ao espelho e, no silêncio que ele lhe retribuiu, visto um eco de si mesma, todo o mundo que tinha, um punhado de pensamentos e emoções e, na bagagem, algumas recordações. Talvez ela se tivesse sentido em casa.

Porque na vida tudo são perdidos e achados.
Que eu saiba perder para me encontrar.

quinta-feira, abril 26, 2007

Curta metragem

Voltaram os olhares empoeirados, os casacos, toda a ridícula panóplia de dias cinzentos. [Os lábios em câmara lenta, remoendo palavras mortiças, inchando suspiros pardacentos.] O que oiço é tão pouco quanto o silêncio fantasmagórico da fita a rodar e, no canto, o protagonismo apagado dos teus dedos mordiscando o papel amarrotado. [Não vou fugir da chuva, não há como…] Faz parte do cenário.

Tenho os átomos exasperados de uma febre desconhecida que me vai sangrando as glândulas. Arranho-te a insanidade num sorriso bem apertado, até o espartilho da polidez te verter o argumento. O meu papel é simples, cruzo a rua ao lado, o guarda-chuva rebelando-se aos caprichos do vento. Tudo a preto e branco. [Já oiço a calçada gasta dedilhando os meus passos.] Provavelmente, ninguém vai reparar.

Meio segundo depois, longe dos grandes planos do teu olhar ensaiado, o café da esquina vai parecer-me convenientemente consolador. Sentar-me-ei. Vou pedir um chá a fumegar e observar os grafittis que desfiguram as paredes da cidade. [O mais certo é concluir que a amo assim, negligentemente abandonada às unhas que lhe desgarram as horas mortas, cicatrizes que vão lembrando que, por ali, alguém viveu.] Guardo-lhe as saudades, pago a conta e saio de cena. Tenho a certeza que o mendigo, gentilmente, cantará Tom Waits, arrastando as notas embriagadas da minha melancolia. Hei-de lembrar-me de não passar por perto, baixarei o volume das emoções, como manda o figurino. [Será tudo como antigamente, os ecos vagos da casa vazia, a fotografia tosca a trair a textura granulada dos teus poros matizando o ecrã.] Não vou deixar as portas baterem. Perdi a deixa do desespero, não vi as sombras focarem a premonição que calcorreava um trágico final feliz. [Afinal, é o que se espera.] Esta é história de passar em horário nobre. Desapaixonadamente, tudo o que resta será politicamente correcto.

[Adeus...]

segunda-feira, abril 16, 2007

Auto-flagelação





















Mastiguei o horror da morte numa ceia oportuna
[Sempre ajuda a engolir melhor as lágrimas]
Como um vício antigo e pardacento
Que me dá às faces aquele ar descolorido e lamacento
Um pouco trágico até,
[É de bom tom ser um pouco soturna]
Preguei um previsível romantismo
Comentei desastres ambientais e genocídios
E, à noite, prenha de um estimado egoísmo
Fiz as teclas gemerem desabafos diletantes e paixões burguesas
Foi essa a história que eu escrevi.

Esperei na berma pelos ecos da chacina
Aguentei, firme, enquanto me retumbavam nos ouvidos
E cataloguei-me “sensível”
[Mas nunca deixei de fechar as persianas]
Perdi a conta das vezes que acordei
Encharcada em vómitos de silêncio
E me levantei, com as penas mutiladas,
Para viver uma vida normal.

[A compaixão é um caminho fácil]
Reza-se uns terços e compra-se a paz da alma
Afinal, ainda que os cristais retinam uma realidade deslocada
Quer-se do vinho que seja depurado de sangue
Sentamos a dor à mesa e, com uma pitada de sal,
Vamos-lhe deglutindo o remorso
Até que a verdade seja tão ténue
Que se perigosamente aproxime da ficção.

A conclusão?
Nunca fui diferente.
Não desprendi as membranas da acomodação
Fiquei-me pelas desculpas vagas
Pelas intenções que nunca jurei cumprir
Carpi as dores alheias em frente à televisão
E fiz disso um último resquício de humanidade
Sei agora que todo este tempo estive conivente
Declaro-me culpada de uma inércia pungente
E cumpro pena de auto-flagelação.


quinta-feira, abril 12, 2007

Pecados íntimos


Dizem dela que matou o próprio filho. Que o arrancou à unhada do ventre inchado, que o embalou, moribundo, até o pequeno corpo arrefecer e os olhos entreabertos se lhe turvarem, num derradeiro esforço de vida. Dizem que a criança estava deformada, o peito minúsculo profanado por uma meticulosa facada. Encontraram-no embebido no seu sangue, sufocado por um ódio que não fez por merecer. Dizem que, durante todos aqueles anos, ela não chorou. Ninguém suspeitou.

Estilhaço-lhe o olhar azul, mais brilhante no ecrã, atolo-me de nódoas ressequidas, de culpas que não sararam, medos que um crime hediondo não matou, mas a única coisa que descubro é que o olhar dela é igual a qualquer olhar. À medida que lhe palmilho a face provocadoramente jovem, os cabelos luminosos, os lábios trémulos vou ouvindo as contracções do silêncio sepulcral que o passado lhe enterrou nas têmporas. Penso na ironia da natureza, irrigando na beleza voluptuosa que cuspiu o seu corpo impúbere toda a sórdida fealdade do ser humano. Que importa se ela tinha 15 anos, se a gravidez não era desejada? Chamo-lhes circunstancialismos, contornáveis decerto, não fossem os sonhos. Esses sim, os sonhos são os homicidas com a cabeça a prémio. Um caminho previamente delineado, uma rota rasgada com persistência na pedra incólume que lhe era a promessa imperdoável de um futuro de portas escancaradas. Um passo mais à frente e as linhas que lhe romperam a sanidade teriam atado outro destino. Mas a bússola das expectativas deu-lhe a direcção errada, as coordenadas invertidas trocaram-lhe os céus e, quando deu por si, tinha bichos marinhos a colarem-lhe mágoas viscosas aos tornozelos. Da índole, nunca lhe saberemos a cor. A história está repisada e os contornos enlameados têm o odor acre e quase imperceptível das mãos de um advogado ardiloso. Expedientes de uma justiça tardia. Que importa?

Depois dela, vejo claramente. Os olhos não espelham a alma. Os anjos não têm que ser bonitos. O mundo não é um filme de cowboys e os papéis não estão, à partida, claramente definidos. Cada pessoa é, em todos os momentos, as suas escolhas.

Quantas pessoas já apunhalaste? Quantos valores abortaste? Quantos erros escondeste no canto mais escuro do armário? Se olhar dentro dos teus olhos, se os fixar no ponto exacto em que se torna insuportável o contacto, se eu te trespassar até a alma queimar, vais contar-me os teus fantasmas? Todos temos pecados íntimos, corpos a apodrecer, sacos no lodo que nunca viram a margem, seladas e inquebráveis caixas de pandora, todos.

Quão turvo é o teu rio?

segunda-feira, abril 09, 2007

Promessas vãs



Se não te importares, vou quebrar todas as regras. Quando não estiveres a olhar, vou dizer que te adoro, desenrolar a história que não nos pertence numa narrativa desapaixonada [que interessa se o teu longe esteve sempre tão perto?], passar o dedo sobre as cartas e sentir a textura dos momentos que descuidadamente esqueceste nelas. Vou certificar-me que nenhum centímetro do teu rosto escapa, impune, ao meu beijo mimado. E não vou pedir desculpa.

Não é que eu sinta saudades [eu não preciso de ti]. O lapso de tempo que o nosso orgulho consumiu ensinou-me que não és insubstituível. Nem tu, nem o teu mundo que, imprudentemente, entoa a minha poesia. Sei que um dia [qualquer dia] uma de nós bate a porta, sem complacência pelo horizonte que não sonhamos em conjunto. Conheço-te os juízos implacáveis, respeito-te a personalidade de ferro impecavelmente adornada de rendas e puro algodão.

[Mas hoje um sorriso veio acordar-me os solfejos da tua voz.]

Saboreio a imperfeição dos nossos ritos tribais. Não deixes nunca que a adoce, chama-me traidora e grita comigo. Os passos que rasguei à areia fria, a lenha que não nos aquecia, a passividade imperturbável da cidade, tudo isso são segredos. Inconfessáveis, como juras de uma ordem milenar. Prometo calar os suspiros quando o seu murmúrio sonolento me vier despertar, dizendo, em tom cúmplice, que me sabe o sorriso no escuro. Prometo não falar dos abraços coreografados, dos arrufos ensaiados, da tua censura implícita numa insubmissa lealdade. Não vou partilhar as insónias em frente à lareira, a música irrompendo pelo silêncio esponjoso da noite rural que galgámos, o desgaste dos risos. E, quando me perguntarem o que vi em ti, vou usar de um lugar comum e nunca vou admitir que o teu jeito felino me fascina. Não duvides, eu vou remeter o meu silêncio para todos artigos do princípio de independência que nos é tão caro [riscar os diálogos insólitos, as coincidências de novela vulgar, os videoclips dos anos 80, passar corrector e reescrever um insalubre “foi uma boa semana"]. Mas, na minha deixa, vou desenhar-te um coração no papel a saber a velho, e, enquanto rabisco uma patética declaração em inglês, lançar-te um olhar e dobrar a esquina do teu caderno.

Depois deixo-te sozinha com o teu mundo de palavras vívidas, dando corda às fantasias de Virgínia Woolf, reinventando a melancolia.

[Eu prometo.]

segunda-feira, abril 02, 2007

Poema em branco


Estranho-me, no estremecimento lânguido e inoportuno de uma adolescência tardia. Se amanheço, o sol tímido que me vai escapando pelos lábios entreabertos cola-me arrepios de orvalho fresco à pele. Os mergulhos nos teus olhos não me curam a ânsia, não me calam o desejo. Na febre das vogais, esqueci-me da pontuação. É uma espécie de insanidade.

[Tudo o que eu quero é verbalizar.
Desculpa se te uso como pretexto.]

Puxo o fio das recordações, com cuidado, não se vão desfazer os nós. O galgar das emoções ensurdece-me, mas, detrás do biombo, só as vejo pelo canto do olho. Espalho-as no pátio, longe das lágrimas, para que não me incendeie a saudade. Vasculho pessoas, disseco lugares, construo o puzzle dos momentos, mas fica sempre a faltar uma peça do que sou.

[Se não for demais, lembra-me de nós.]

Sento-me, a enlouquecer o tiquetaquear das perguntas. Presto contas ao relógio das respostas que não te dei. Já houve tempos em que a gula das conversas ajudava à digestão dos pecados. Nesses dias, tu declamavas sorrisos com uma solenidade despropositada e eu via nos soluços da ternura uma inócua poesia. Hoje os versos são incompletos, os sentimentos já não rimam. Deveria haver quem me dissesse que é feio mudar de opinião.

[A métrica está desencontrada, a sonoridade vai em contramão.]

Talvez eu fuja. Assim não temos que lhe dar um final. Visto o meu melhor sorriso e saio. Talvez eu finja. Aperte a mão aos fantasmas, fumando frustrações com um ar displicente. [Vou rasgando folhas sem pressa, ainda está tudo em branco.] Talvez me ria. E te acene, ignorando o teu olhar insolente. À força de guardar vidros e conchas que rasgaram a carne, aprendi a emparelhar pulsações obstinadas. Posso esconder-me nelas e praticar uma maturidade desajeitada. [Espalho a tinta, num momento de sórdida lucidez.] Não contes as sílabas, numerei as palavras do avesso. Amanhã as conjugações serão outras.


Não está tempo para poesias.

domingo, março 25, 2007

Leviatã

















Não olhes para trás
Enquanto desces a avenida
Dobra a língua
Amarra as lágrimas
Segura o passo que vacila
Representa o teu próprio sorriso
Os dramas épicos estão fora de moda.

Não deixes que eu te sinta
O sangue derramado
O olhar pálido
A palavra incolor
Bate a porta
Sem violência ou rancor
Deixa-me no quarto sozinha
Com a placidez das horas consumadas
Ouvindo-te o silêncio dos passos
Afastando-te de quem fui.

Joga o meu jogo
Entrega as copas
Juro-te que essa tua complacência
É o teu maior trunfo
Não tarda o Leviatã em mim
Se cansará de truques e de espadas
E aí, ainda que com a mão cheia de duques,
A última jogada será tua.

quinta-feira, março 22, 2007

Have I told you lately that I love you?



Falo muito e disparato. Comento o tempo e, pelo caminho, passo em revista a notícia do jornal das oito e a vida da outra. Falo para queimar horas, para encurtar distâncias, para sentir que dou uma parte do que sou. Um vasto leque de futilidades, ao bom sabor de uma risada despreocupada. Porque a vida já é sisuda o suficiente. Algumas vezes, pequenos tesouros. Pensamentos comuns, sensaborões, desabafos que se esperam, pedaços de mim servidos gulosamente com chantilli. Se mudo de ideias, é porque não gosto do tédio. O que eu gosto é de desafinar, de tocar ao contrário. Sou coerente com a minha desarmonia e deixo-me ir, volátil, nessa ilusão de eternidade que partilho.
Só tu és, na promiscuidade das palavras entrelaçadas, o meu último recanto de intimidade. Guardo-te para mim, como um segredo. Não te digo e, a olho nu, parece que nem te sinto. É tamanho o turbilhão do palavrear que me escorre dos lábios, que parece que és uma gota, uma tão pequena gota, negligenciada pelas outras na minha gula de cuspir o mundo. Perdoa-me se te omito, se nem te sei ao certo o sabor. Nunca te disse em palavras. Porque há sentimentos perante os quais elas pouco podem e envergonham-se e nem sequer chegam a acontecer. (não há braços que enlacem o universo inteiro em ti) E a tua presença? É etérea, como um pestanejar, como um manto de estrelas arrepiando-me a pele ao amanhecer. Fecho os olhos e provo-te a doçura, sei-a de côr. Mas não lhe encontrei o nome. Por isso, deixo somente que sejas em mim. Porque tu és sangue, correndo-me nas veias, misturada com o que sou. Desde o primeiro segundo, de tal forma indelével e indistinto que, sem ele, de pouco me valia o nome, um rosto e uma história. Porque este amor que sinto é a minha identidade, o fluxo de vida que agita cada célula do meu corpo. É a primeira imagem (e ainda vejo o teu sorriso), a primeira vez que saboreei o mundo e o vi, pelos teus olhos. Não houve, até hoje, imagem mais bonita. Não há, não houve, não haverá. Ninguém como tu.
Desculpa. Não sei a que cheiras. Há canela e lavanda, o perfume dos limões na árvore, o toque da relva nos pés. Nem sei dos teus olhos se são verdes ou castanhos. Que tempo faz hoje em ti? Se chove, cheiras a terra molhada. E, no fundo do teu sorriso, há sempre aquele travo a mel. Como se eu nunca te pudesse desiludir. Acreditas no poder do Amor (depois do mundo te desiludir, como consegues?) e em mim mais do que em ti mesma. Constróis-me assim, como gostarias de ter sido desde o início. Empenhas toda a tua paciência, compreensão e carinho a ensinar-me a ser forte e dócil, para que os embates do mundo não possam derrubar o meu sono. O que não sabes é que essa sabedoria que pensas ler nas nuvens sempre esteve dentro de ti. Ouvi, encostada ao teu peito, uma concha segredar-me as pérolas que cala o fundo do teu mar. Ouvi dos teus medos, das tuas quedas, das tuas lágrimas. Perguntei-me como consegues, depois de tudo, manter o olhar cristalino. És mais do que sabes, mais vida, mais água, mais luz. Tu és rocha dura, saindo incólume do desgaste das ondas e, em ti, tenho o meu abrigo secreto, o meu rasgo azul de céu. Eu, por ti, sou animal, possuída pela mais instintiva forma de amor. Não sei amar-te diferente. Só com tudo o que sou, procurando-te nas luzes e nos silêncios, a ti e ao teu odor cálido a vida e a sonhos.

(Deito a cabeço no teu regaço e é como se o mundo voltasse a ser uma bolsa de água, silenciosa. Como se me escondesses, e eu estivesse só contigo, onde mais ninguém me pode encontrar.)

Voo porque tenho asas. Aquelas que me deste, lembraste? Que suturaste, que cozeste remendos, que beijaste para passar a dor. Mas nenhumas asas me levam para longe de ti. Servem só para te passear até ao limite da nossa imaginação e te trazer de volta, porque qualquer realidade é doce, se tu estás. Ainda te sinto o calor, como um berço embalando-me as contas coloridas que eram as horas nessa altura. Apetece-me ser grande e cobrir-te e apagar o passado, reescrever a tua história. Mas, se o fizesse, não serias tu, pois não? É egoísmo se te quiser assim? Amar-te-ia sempre. Mas foi esse teu passo de menina, a cor de fogo que os teus cabelos roubaram à terra onde rebolavas em criança, a brisa de seda espreitando nas janelas do teu corpo que eu aprendi a amar. Foi uma mulher de contrastes que me deste a conhecer, brava nas colheitas, sensível com os espinhos insuspeitos das rosas, frágil e resistente, determinada e insegura, forte e vulnerável, de uma beleza ingénua e uma delicadeza musical. Aprendi esse mundo rico que palpita no teu peito, o teu jeito de pôr-do-sol na pradaria. Decorei as tonalidades do teu céu e não quero outro. Como poderia querer? Se és inteira em mim, se te invejo de uma admiração convulsiva. Desejo todos os dias ser digna de ti, ter alma e coração bastantes. Queria só que soubesses, dito assim, toscamente. Não o sei dizer de outra maneira.

(nunca haverá palavras que te possam olhar o brilho nos olhos)

E, ainda assim, toda eu sei, porque acendes o meu mundo, que a vida começa e acaba em ti. Queria que soubesses.


Have I told you lately that I love you?
Have I told you there’s no one else above you?

quarta-feira, março 14, 2007

The wind that shakes the barley


The wind that shakes the barley é, como a canção que lhe empresta o nome, uma viagem melódica e intimista pelos meandros dos sentimentos que unem e afastam um povo. Na linha das obras anteriores de Ken Loach e assinado com o seu traço controverso de agitador de consciências, o filme vai recuperar a cultura irlandesa, profundamente marcada por uma contínua luta pela independência. É esse espírito inconformado, resistente, idealista, que retrata o realizador britânico. Retratar é a palavra adequada. Ken Loach é, efectivamente, um dos herdeiros do realismo social, preocupado em fotografar as injustiças, capturando sensações reais. A intenção é criar no espectador um sentimento identificação, de proximidade com esses rostos anónimos em quem pinta um nome e uma estória. Assim, sem máscaras. Sacrifica-se a estética em prol da violência da filmagem, que se espera crua, opressiva. Porque a realidade não foi bela, quer-se dos sentimentos que sejam nus, despidos de artifícios e pretensões, servidos ao mais puro sabor do sangue e das lágrimas. Loach não tem medo de mostrar as mãos sem trunfos, abdicando de planos largos e de efeitos especiais, para que a atenção nunca se desprenda do horror, que é o fio condutor de uma história que fala da resistência do Exército Republicano Irlandês (IRA), mas que trespassa, ardendo como sal numa ferida, todas as guerras que já se travaram pela independência de um povo.
Já antes Ken Loach terá chocado audiências com as suas mensagens políticas radicais. Sem pudores, admite, é uma autocrítica. Contra o imperalismo, contra o poder que cega os Homens. Após receber a Palma de Ouro que laureou o filme em Cannes, Loach declarou que pretendia que o filme fosse um primeiro passo na reconciliação dos ingleses com o seu passado. Às pessoas que lhe duvidaram o patriotismo, disse, sem pretensões de maior, que atacar os erros e as brutalidades dos nossos líderes, é, acima de tudo, um dever.
Outros antes haviam traçado este trilho. Michael Collins é um filme com alguns pontos em comum. Mas Loach abdica das figuras históricas, personalizando o conflito em homens e mulheres vulgares. Por isso, descentraliza-se para uma região rural, para personagens que se sentem de carne e osso e transpõe o drama para as próprias vivências de quem o vê. Se, algures no mundo, há sempre alguém a lutar e a morrer pela independência de uma nação e se ainda pudemos aprender alguma coisa com o passado para mudar o presente, então é de todo vital que as pessoas se vejam do outro lado da tela e sintam arrepiar-se-lhes na pele a dor que é alheia, mas que transborda fronteiras. Enquanto vemos o filme, não nos abandona a sensação de estar a espiar conversas. E nem é muito o que se explora o drama, a repulsa, o medo. Há quem acuse Loach de ter deixado morrer-lhe o potencial, numa abordagem que não tira partido de toda a emotividade que vem, indissociável, da história que conta. No que toca à minha sensibilidade, Loach optou conscientemente por um estilo depurado, uma linguagem seca de cores e traços que contrasta com a verdura exuberante das paisagens, como que falando de uma realidade deslocada, e desculpando-se por essa tristeza inesperada que não deveria acontecer. Esta é uma luta de pessoas simples.
Loach tem um lugar ao sol para todos aqueles que construíram uma história. Por isso se preocupa tanto em mostrar todas as facetas da mesma revolução. Fala de mulheres, não na forma clássica de as representar, sentadas, chorando as dores que eram de todos, mas que os homens, no torpor da infâmia, tinham que calar. Dessas sim, no respeito da dor impotente, mas é às mulheres que lutaram com as armas que tinham ao alcance, que transportaram mensagens, que se envolveram nos tribunais e na política, que eram fonte de informações e alimentavam emboscadas que Loach faz uma ode; às mulheres que tomaram as rédeas do destino de um país e nele participaram tão activamente como os homens que mataram e morreram por ele. No mesmo tom, a religião não é deixada ao acaso. Não poderia ser. Irlandeses são fervorosos e o poder da Igreja é inegável na sua História. Muitos dos latifundiários que apoiavam os ingleses eram protestantes e os rebeldes, católicos. No entanto, esta coesão é deposta pelos acontecimentos e é pela voz do padre católico que se semeia a discórdia, que viria a provocar a cisão dentro do Sinn Féin, levando à guerra civil. Porque a Irlanda é um país de contrastes, unido no desespero, profundamente desmembrado nas suas crenças.
Durante todo o filme, travamos a luta de Damien e Teddy O’Donovan, dois irmãos, cujos caminhos se entrelaçam só por um momento, para logo seguirem direcções diferentes. Ao acompanharmos as acções da unidade móvel de guerrilha, sentimo-nos parte da mesma realidade. Sentimos a falta de preparação, a força da revolta, o grito de terror que lhes enevoa o horizonte. No entanto, a narrativa é desiludida, questionando o poder do amor, amargurando-se com a ambição dos homens. Pergunta-se porquê e a que leva. Se há triunfo, se há Brisa de mudança, como sugere a tradução portuguesa. O ódio é corrosivo e os ideais implicam sacrifícios. Às vezes, de valores. Não se julga, aqui. Mostra-se. É a natureza humana no seu estado mais puro. Mais do que um testemunho histórico, The wind that shakes the barley é uma reflexão acerca do impacto da guerra nas pessoas e nas relações familiares. Ken Loach é um romântico. Fala de Republicanos, que lutam por uma nação de trabalhadores e camponeses. Fala do governo do Estado Livre, primeiro disposto a vender-se aos homens de negócios para poder financiar as armas e, mais tarde, institucionalizado. Fala de extremismos e incongruências. De ideais repudiados no deslumbre do poder. Fala de paixão e de racionalidade e de como a união destes jovens em torno de uma mesma aspiração pôde quebrar-se. Nauseados de injustiças, juntaram pedras e venceram Golias, mas deixaram-se fragilizar no seu próprio seio e foram apodrecendo. O mesmo amor, a mesma vontade, caminhos diferentes. E o peso dos mortos. A toda hora, o peso dos mortos.

Agradeço ao cineclube da FDUP, que me lançou o desafio de escrever o comentário crítico ao filme, lançando-me num mergulho intenso na História irlandesa e na alma dos Homens que lhe vêm escritos nas entrelinhas.

quinta-feira, março 01, 2007

Saudosismo

Não te vi no deslumbre de uma bebedeira de cores e sons, não tinhas o glamour, nem a juventude, nem o teu céu prometia mergulhos de azul. Tinhas a sobriedade de uma velha anfitriã, a nudez rude que não fascina, nem incomoda. Recebeste-me com os teus olhos cinzentos impávidos e, no teu seio, passeei impunemente sem que uma única gaivota viesse anunciar a Primavera. Não houve violinos uivando lamentos nas ruas, nem estrelas na tua noite cerrada. Não houve quem se detivesse, quem olhasse, quem a minha passagem tocasse no seu suave restolhar. Só a cauda do teu vestido antiquado roçando-me as paredes do encantamento. Não lhe chamaria paixão.

Recosto-me e fico a olhar-te daqui, de onde ninguém nos vê. Percorro-te a pele enrugada nas fotografias, os sorrisos que a objectiva prendeu eternamente a um momento. Quase te sinto a mão gelada descendo-me pelo rosto, o raio tímido espreitando no canto dos teus lábios. É possível ter-me deixado inebriar? Já vi tantas como tu e tão mais exuberantes. Talvez tenha sido essa tua despretensão, tocando a indiferença, que primeiro me intrigou. A tua magia está para além do óbvio, da austeridade dos teus edifícios, dos traços fechados das tuas gentes. Porque ninguém sabe que, por trás das tuas fachadas, há pequenos reinos de faz de conta. Ninguém sabe que, quando as nuvens se abrem no teu rosto, tens sol ardendo-te nos cabelos. Ninguém sabe. Esse é um segredo que partilhaste só comigo.
Quando me voltar a apaixonar, prometo lembrar-me das noites boémias em ti. Das conversas de café, do homem que rasgava a alma no papel mesmo ao lado, das mãos cruzando a mesa em voos de infinito. Vou ver-te sempre vagueando por entre estantes transbordando livros, cada um com o seu perfume, a sua história, o seu pedaço de sonhos e de pecados. Vou saber dizer todos os nomes que tiveste e guardar o sabor que todos eles deixaram na minha boca. Permite-me que te use, que corra para os teus braços e respire longamente o teu travo a mundo novo. Até me saciar de sonho tornado realidade. Para que não se dissipe em mim a memória do teu olhar entrecortado pelas gotas de nevoeiro. Por isso, te escrevo, desenhando as linhas do teu corpo, para me perder quando precisar de me encontrar e saber-te real, algures nesse mundo, longe de mim.
Ficamos para sempre ligados aos lugares onde fomos felizes.

Obrigada Budapeste.

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

As time goes by

Um ano...



Que tem o perfume das palavras derramadas nos olhares que as esperavam.
Obrigada por tornarem este sonho possivel.
Bem vindos ao meu mundo secreto *piscar de olho*
Nota Desculpem a ausencia de acentos, mas ainda n decifrei os recantos ocultos de um teclado estrangeiro. Beijos de Budapeste.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Pensamentos soltos



Era do barulho arrepiando-me o vómito que eu estava farta. Por isso, construí um muro de certezas e pus-me do lado dos sensatos, daqueles que viam o que mais ninguém queria ver, os que assumiam as verdades como elas são. Fiz-me heroína de história alheia, mais tolerante e mais compreensiva, mas não por acreditar num Homem melhor. Fi-lo porque me enojar a hipocrisia, por pensar que da comunidade é simplesmente o dever de cuidar o melhor possível das cicatrizes de alguém, certo ou errado. Nunca foi uma questão de opção o que argui, queria tão só dignidade. Pedia respeito por uma dor que não é de ninguém senão de quem a traz no ventre, por uma vida que merece amor desde o primeiro instante. Para que mais ninguém se sentisse sozinho, enquanto houver mãos para estender. E estive tão segura da minha opção que me doía a alma ver da vida feita roupa lavada em praça pública. Deixei-me cegar ao medo de mudar de ideias. Fechei os olhos e esperei que tudo passasse rápido. Ganhámos (todos?). E só então, sentada na sala vazia, depois de passar o cortejo, ouvi as lágrimas que amarrei durante tanto tempo contra a arrogância e perguntei-me se da guerra que travámos não saíram apenas feridos. Espero, ardendo na febre da desolação, que tenhamos escolhido o caminho certo...

E, enquanto a sociedade navega para outras águas, a vida de todos os dias continua na sua habitual placidez. Porque até a vida e a morte precisam do bendito papel («que papel?», o papel). E lá vou exercitando a minha capacidade de me rir do ridículo, enquanto um burocrata dos serviços saltita pela sala apinhada de gente cansada e mal-humorada para abrir a porta a cada pessoa que resolve sair. Isto porque é de extrema importância certificar-se de que ninguém entra depois da hora de serviço... Ou quase... Afinal, talvez o relógio esteja avariado... Também que diferença faz se encerram às 16h ou às 15h45? Porque é que as pessoas hão de andar sempre tão insatisfeitas? Faz todo o sentido, claro. Alguém que acompanhe as pessoas à porta, serviço de qualidade, não é o que se elogia no estrangeiro? No entretanto, os processos continuam a acumular na secretária, diante do olhar vazio do resto dos burocratas, que agora estão a cumprimentar a recém-mamã que chegou com o seu bebé. Não importa se o viram ontem, certamente que têm considerações a fazer sobre como o petiz «está grande e esperto». E lá vai mais uma pausa para café, porque é cansativo isto dos papéis («que papéis?», os papéis). As pessoas mexem-se, impacientes, e tossem. O velho do restelo vai-se aventurando a transformar os dizeres entredentes em críticas acesas, mete convesa com toda a gente, tudo está errado neste país. E começa na funcionária que enrola o cabelo com ar sonhador, enquanto fala ao telefone. Assuntos de trabalho, certamente. Quaisquer duas horas chegam para arranjar o papel. Isto se não tiver que voltar amanhã porque falta o documento. A máquina das senhas avariou, por isso chamam as pessoas em voz alta. O único senão é que só conhecem a letra C. É pena que a maior parte esteja para a letra A, mas porque é que havemos de ser tão esquisitos? Chegou a minha vez. Nem acredito. Esboço o meu melhor sorriso, não vá a minha cara criar mais um obstáculo à obtenção do (precioso) papel. Se calhar, enganei-me na letra. Mas para que serve a entrega de documentos?, pergunto. "Para entregar documentos", ora lá está, obviamente. Faz todo o sentido.

terça-feira, janeiro 16, 2007

Babel


Somos todos iguais, diz-se quase sem sentir. Iguais quando o desespero toca as cordas estridentes do medo, iguais nas lágrimas... A dor não tem cor... Somos todos iguais, mas sentimo-nos tão sozinhos sempre que uma rajada de impotência vem abanar-nos a fragilidade. Sentimo-nos no topo da torre de Babel e ninguém fala a nossa língua... Ainda não falamos a mesma língua... Porquê?
A política estará sempre um passo à frente do homem e o preconceito cega-nos o coração às palavras dos outros. Haverá sempre leis e burocratas, muros e correntes, monstros e moinhos de vento a separar-nos. Nunca falaremos a mesma língua. Nem quando o brilho das luzes ilude a escuridão da noite, nem se a música maquilhar o silêncio. Haverá sempre alguém no pico da solidão, alguém mergulhado no seu próprio abismo, onde não há dia nem som. E quantos de nós compreenderão? Quantos de nós não julgarão antes de estender a mão? Quantos de nós?
Babel fala de esperança. Somos todos desertos, impiedosos nos erros e nas críticas, áridos na ternura que partilhamos nas ruas, de um calor tão abrasador quanto infértil. Somos todos fontes a transbordar, capazes de nos arrepender e de chorar, assustados mas solidários, frutos imbérberes de um amor maior. Somos sol e chuva e, às vezes, é apenas um pequeno gesto os separa. A cada passo cruzamo-nos com vidas iguais à nossa e temos sempre a opção de tentar ver a água que nos pede o olhar que nos espreita da esquina. Podemos ser cactos, vestirmo-nos de espinhos para nos protegermos do mundo que nos esmaga, ferir indiscriminadamente. Mas então não deixaremos ninguém aproximar-se e, quando o desespero nos tocar a nós, não haverá quem compreenda os gritos silenciosos do nosso olhar. É sempre uma escolha nossa.
Não falamos a mesma língua, mas podemos entender-nos por gestos. Podemos nem nos entender. Basta um abraço, as lágrimas são todas iguais.