Um outro verão
Anoto no canto do guardanapo os silêncios para não me esquecer das palavras que já disseste. Parece tudo feito à medida, a tua fúria e o meu cansaço. Afinal, há um tempo certo para partir. Não me lembro de me ter virado para acenar.
Deitei fora o medidor de passos e a bola de cristal, o velho globo riscado a giz e as bússolas que nunca me orientaram. Fiquei com a agenda pelo pequeno prazer de a saber vazia. Um dia, será a falível memória o único resquício do meu caminho e, então, poderei docemente trair-me, recordando uma lealdade que nunca tiveste e que eu aprendi a não te guardar.
Incomoda-me ouvir pingar lamentos no sótão atulhado, como se entoassem uma espécie de tristeza, por isso arrasto os móveis até arranhar os sentidos. Até ao sangue secar nas veias, até as palavras pararem de acontecer. Às vezes, parece-me que vai tão mais de mim naquilo que não digo, nas entrelinhas do meio segundo em que olho para ti e te esqueço. Sento-me e baloiço na ténue vertigem de saber que ainda posso saltar, sentir-te o chão esmurrar-me os joelhos, e que não quero, porque a dura verdade que me traz incerta na tua vida é que eu sempre amei mais a liberdade do que te quis a ti.
Deixo-te ir. Como se nunca tivesse querido que fosse para sempre. Passo impune, incólume às ridículas promessas que o delírio das insónias nos consumiu. Fomos mais, muito mais. Mas as nossas ruas deram sempre em becos sem saída e cedo o soubemos. Há muito que nos despedimos, um acordo tácito que o teu olhar pardo não me desmentiu. Por cima do ombro, adivinho-te o gesto inacabado, suspenso no tempo indeterminado que demorarei a voltar. Recuso-me a olhar. Há em mim mais, muito mais. Um dia, voltar-te-ei a encontrar.