domingo, março 25, 2007

Leviatã

















Não olhes para trás
Enquanto desces a avenida
Dobra a língua
Amarra as lágrimas
Segura o passo que vacila
Representa o teu próprio sorriso
Os dramas épicos estão fora de moda.

Não deixes que eu te sinta
O sangue derramado
O olhar pálido
A palavra incolor
Bate a porta
Sem violência ou rancor
Deixa-me no quarto sozinha
Com a placidez das horas consumadas
Ouvindo-te o silêncio dos passos
Afastando-te de quem fui.

Joga o meu jogo
Entrega as copas
Juro-te que essa tua complacência
É o teu maior trunfo
Não tarda o Leviatã em mim
Se cansará de truques e de espadas
E aí, ainda que com a mão cheia de duques,
A última jogada será tua.

quinta-feira, março 22, 2007

Have I told you lately that I love you?



Falo muito e disparato. Comento o tempo e, pelo caminho, passo em revista a notícia do jornal das oito e a vida da outra. Falo para queimar horas, para encurtar distâncias, para sentir que dou uma parte do que sou. Um vasto leque de futilidades, ao bom sabor de uma risada despreocupada. Porque a vida já é sisuda o suficiente. Algumas vezes, pequenos tesouros. Pensamentos comuns, sensaborões, desabafos que se esperam, pedaços de mim servidos gulosamente com chantilli. Se mudo de ideias, é porque não gosto do tédio. O que eu gosto é de desafinar, de tocar ao contrário. Sou coerente com a minha desarmonia e deixo-me ir, volátil, nessa ilusão de eternidade que partilho.
Só tu és, na promiscuidade das palavras entrelaçadas, o meu último recanto de intimidade. Guardo-te para mim, como um segredo. Não te digo e, a olho nu, parece que nem te sinto. É tamanho o turbilhão do palavrear que me escorre dos lábios, que parece que és uma gota, uma tão pequena gota, negligenciada pelas outras na minha gula de cuspir o mundo. Perdoa-me se te omito, se nem te sei ao certo o sabor. Nunca te disse em palavras. Porque há sentimentos perante os quais elas pouco podem e envergonham-se e nem sequer chegam a acontecer. (não há braços que enlacem o universo inteiro em ti) E a tua presença? É etérea, como um pestanejar, como um manto de estrelas arrepiando-me a pele ao amanhecer. Fecho os olhos e provo-te a doçura, sei-a de côr. Mas não lhe encontrei o nome. Por isso, deixo somente que sejas em mim. Porque tu és sangue, correndo-me nas veias, misturada com o que sou. Desde o primeiro segundo, de tal forma indelével e indistinto que, sem ele, de pouco me valia o nome, um rosto e uma história. Porque este amor que sinto é a minha identidade, o fluxo de vida que agita cada célula do meu corpo. É a primeira imagem (e ainda vejo o teu sorriso), a primeira vez que saboreei o mundo e o vi, pelos teus olhos. Não houve, até hoje, imagem mais bonita. Não há, não houve, não haverá. Ninguém como tu.
Desculpa. Não sei a que cheiras. Há canela e lavanda, o perfume dos limões na árvore, o toque da relva nos pés. Nem sei dos teus olhos se são verdes ou castanhos. Que tempo faz hoje em ti? Se chove, cheiras a terra molhada. E, no fundo do teu sorriso, há sempre aquele travo a mel. Como se eu nunca te pudesse desiludir. Acreditas no poder do Amor (depois do mundo te desiludir, como consegues?) e em mim mais do que em ti mesma. Constróis-me assim, como gostarias de ter sido desde o início. Empenhas toda a tua paciência, compreensão e carinho a ensinar-me a ser forte e dócil, para que os embates do mundo não possam derrubar o meu sono. O que não sabes é que essa sabedoria que pensas ler nas nuvens sempre esteve dentro de ti. Ouvi, encostada ao teu peito, uma concha segredar-me as pérolas que cala o fundo do teu mar. Ouvi dos teus medos, das tuas quedas, das tuas lágrimas. Perguntei-me como consegues, depois de tudo, manter o olhar cristalino. És mais do que sabes, mais vida, mais água, mais luz. Tu és rocha dura, saindo incólume do desgaste das ondas e, em ti, tenho o meu abrigo secreto, o meu rasgo azul de céu. Eu, por ti, sou animal, possuída pela mais instintiva forma de amor. Não sei amar-te diferente. Só com tudo o que sou, procurando-te nas luzes e nos silêncios, a ti e ao teu odor cálido a vida e a sonhos.

(Deito a cabeço no teu regaço e é como se o mundo voltasse a ser uma bolsa de água, silenciosa. Como se me escondesses, e eu estivesse só contigo, onde mais ninguém me pode encontrar.)

Voo porque tenho asas. Aquelas que me deste, lembraste? Que suturaste, que cozeste remendos, que beijaste para passar a dor. Mas nenhumas asas me levam para longe de ti. Servem só para te passear até ao limite da nossa imaginação e te trazer de volta, porque qualquer realidade é doce, se tu estás. Ainda te sinto o calor, como um berço embalando-me as contas coloridas que eram as horas nessa altura. Apetece-me ser grande e cobrir-te e apagar o passado, reescrever a tua história. Mas, se o fizesse, não serias tu, pois não? É egoísmo se te quiser assim? Amar-te-ia sempre. Mas foi esse teu passo de menina, a cor de fogo que os teus cabelos roubaram à terra onde rebolavas em criança, a brisa de seda espreitando nas janelas do teu corpo que eu aprendi a amar. Foi uma mulher de contrastes que me deste a conhecer, brava nas colheitas, sensível com os espinhos insuspeitos das rosas, frágil e resistente, determinada e insegura, forte e vulnerável, de uma beleza ingénua e uma delicadeza musical. Aprendi esse mundo rico que palpita no teu peito, o teu jeito de pôr-do-sol na pradaria. Decorei as tonalidades do teu céu e não quero outro. Como poderia querer? Se és inteira em mim, se te invejo de uma admiração convulsiva. Desejo todos os dias ser digna de ti, ter alma e coração bastantes. Queria só que soubesses, dito assim, toscamente. Não o sei dizer de outra maneira.

(nunca haverá palavras que te possam olhar o brilho nos olhos)

E, ainda assim, toda eu sei, porque acendes o meu mundo, que a vida começa e acaba em ti. Queria que soubesses.


Have I told you lately that I love you?
Have I told you there’s no one else above you?

quarta-feira, março 14, 2007

The wind that shakes the barley


The wind that shakes the barley é, como a canção que lhe empresta o nome, uma viagem melódica e intimista pelos meandros dos sentimentos que unem e afastam um povo. Na linha das obras anteriores de Ken Loach e assinado com o seu traço controverso de agitador de consciências, o filme vai recuperar a cultura irlandesa, profundamente marcada por uma contínua luta pela independência. É esse espírito inconformado, resistente, idealista, que retrata o realizador britânico. Retratar é a palavra adequada. Ken Loach é, efectivamente, um dos herdeiros do realismo social, preocupado em fotografar as injustiças, capturando sensações reais. A intenção é criar no espectador um sentimento identificação, de proximidade com esses rostos anónimos em quem pinta um nome e uma estória. Assim, sem máscaras. Sacrifica-se a estética em prol da violência da filmagem, que se espera crua, opressiva. Porque a realidade não foi bela, quer-se dos sentimentos que sejam nus, despidos de artifícios e pretensões, servidos ao mais puro sabor do sangue e das lágrimas. Loach não tem medo de mostrar as mãos sem trunfos, abdicando de planos largos e de efeitos especiais, para que a atenção nunca se desprenda do horror, que é o fio condutor de uma história que fala da resistência do Exército Republicano Irlandês (IRA), mas que trespassa, ardendo como sal numa ferida, todas as guerras que já se travaram pela independência de um povo.
Já antes Ken Loach terá chocado audiências com as suas mensagens políticas radicais. Sem pudores, admite, é uma autocrítica. Contra o imperalismo, contra o poder que cega os Homens. Após receber a Palma de Ouro que laureou o filme em Cannes, Loach declarou que pretendia que o filme fosse um primeiro passo na reconciliação dos ingleses com o seu passado. Às pessoas que lhe duvidaram o patriotismo, disse, sem pretensões de maior, que atacar os erros e as brutalidades dos nossos líderes, é, acima de tudo, um dever.
Outros antes haviam traçado este trilho. Michael Collins é um filme com alguns pontos em comum. Mas Loach abdica das figuras históricas, personalizando o conflito em homens e mulheres vulgares. Por isso, descentraliza-se para uma região rural, para personagens que se sentem de carne e osso e transpõe o drama para as próprias vivências de quem o vê. Se, algures no mundo, há sempre alguém a lutar e a morrer pela independência de uma nação e se ainda pudemos aprender alguma coisa com o passado para mudar o presente, então é de todo vital que as pessoas se vejam do outro lado da tela e sintam arrepiar-se-lhes na pele a dor que é alheia, mas que transborda fronteiras. Enquanto vemos o filme, não nos abandona a sensação de estar a espiar conversas. E nem é muito o que se explora o drama, a repulsa, o medo. Há quem acuse Loach de ter deixado morrer-lhe o potencial, numa abordagem que não tira partido de toda a emotividade que vem, indissociável, da história que conta. No que toca à minha sensibilidade, Loach optou conscientemente por um estilo depurado, uma linguagem seca de cores e traços que contrasta com a verdura exuberante das paisagens, como que falando de uma realidade deslocada, e desculpando-se por essa tristeza inesperada que não deveria acontecer. Esta é uma luta de pessoas simples.
Loach tem um lugar ao sol para todos aqueles que construíram uma história. Por isso se preocupa tanto em mostrar todas as facetas da mesma revolução. Fala de mulheres, não na forma clássica de as representar, sentadas, chorando as dores que eram de todos, mas que os homens, no torpor da infâmia, tinham que calar. Dessas sim, no respeito da dor impotente, mas é às mulheres que lutaram com as armas que tinham ao alcance, que transportaram mensagens, que se envolveram nos tribunais e na política, que eram fonte de informações e alimentavam emboscadas que Loach faz uma ode; às mulheres que tomaram as rédeas do destino de um país e nele participaram tão activamente como os homens que mataram e morreram por ele. No mesmo tom, a religião não é deixada ao acaso. Não poderia ser. Irlandeses são fervorosos e o poder da Igreja é inegável na sua História. Muitos dos latifundiários que apoiavam os ingleses eram protestantes e os rebeldes, católicos. No entanto, esta coesão é deposta pelos acontecimentos e é pela voz do padre católico que se semeia a discórdia, que viria a provocar a cisão dentro do Sinn Féin, levando à guerra civil. Porque a Irlanda é um país de contrastes, unido no desespero, profundamente desmembrado nas suas crenças.
Durante todo o filme, travamos a luta de Damien e Teddy O’Donovan, dois irmãos, cujos caminhos se entrelaçam só por um momento, para logo seguirem direcções diferentes. Ao acompanharmos as acções da unidade móvel de guerrilha, sentimo-nos parte da mesma realidade. Sentimos a falta de preparação, a força da revolta, o grito de terror que lhes enevoa o horizonte. No entanto, a narrativa é desiludida, questionando o poder do amor, amargurando-se com a ambição dos homens. Pergunta-se porquê e a que leva. Se há triunfo, se há Brisa de mudança, como sugere a tradução portuguesa. O ódio é corrosivo e os ideais implicam sacrifícios. Às vezes, de valores. Não se julga, aqui. Mostra-se. É a natureza humana no seu estado mais puro. Mais do que um testemunho histórico, The wind that shakes the barley é uma reflexão acerca do impacto da guerra nas pessoas e nas relações familiares. Ken Loach é um romântico. Fala de Republicanos, que lutam por uma nação de trabalhadores e camponeses. Fala do governo do Estado Livre, primeiro disposto a vender-se aos homens de negócios para poder financiar as armas e, mais tarde, institucionalizado. Fala de extremismos e incongruências. De ideais repudiados no deslumbre do poder. Fala de paixão e de racionalidade e de como a união destes jovens em torno de uma mesma aspiração pôde quebrar-se. Nauseados de injustiças, juntaram pedras e venceram Golias, mas deixaram-se fragilizar no seu próprio seio e foram apodrecendo. O mesmo amor, a mesma vontade, caminhos diferentes. E o peso dos mortos. A toda hora, o peso dos mortos.

Agradeço ao cineclube da FDUP, que me lançou o desafio de escrever o comentário crítico ao filme, lançando-me num mergulho intenso na História irlandesa e na alma dos Homens que lhe vêm escritos nas entrelinhas.

quinta-feira, março 01, 2007

Saudosismo

Não te vi no deslumbre de uma bebedeira de cores e sons, não tinhas o glamour, nem a juventude, nem o teu céu prometia mergulhos de azul. Tinhas a sobriedade de uma velha anfitriã, a nudez rude que não fascina, nem incomoda. Recebeste-me com os teus olhos cinzentos impávidos e, no teu seio, passeei impunemente sem que uma única gaivota viesse anunciar a Primavera. Não houve violinos uivando lamentos nas ruas, nem estrelas na tua noite cerrada. Não houve quem se detivesse, quem olhasse, quem a minha passagem tocasse no seu suave restolhar. Só a cauda do teu vestido antiquado roçando-me as paredes do encantamento. Não lhe chamaria paixão.

Recosto-me e fico a olhar-te daqui, de onde ninguém nos vê. Percorro-te a pele enrugada nas fotografias, os sorrisos que a objectiva prendeu eternamente a um momento. Quase te sinto a mão gelada descendo-me pelo rosto, o raio tímido espreitando no canto dos teus lábios. É possível ter-me deixado inebriar? Já vi tantas como tu e tão mais exuberantes. Talvez tenha sido essa tua despretensão, tocando a indiferença, que primeiro me intrigou. A tua magia está para além do óbvio, da austeridade dos teus edifícios, dos traços fechados das tuas gentes. Porque ninguém sabe que, por trás das tuas fachadas, há pequenos reinos de faz de conta. Ninguém sabe que, quando as nuvens se abrem no teu rosto, tens sol ardendo-te nos cabelos. Ninguém sabe. Esse é um segredo que partilhaste só comigo.
Quando me voltar a apaixonar, prometo lembrar-me das noites boémias em ti. Das conversas de café, do homem que rasgava a alma no papel mesmo ao lado, das mãos cruzando a mesa em voos de infinito. Vou ver-te sempre vagueando por entre estantes transbordando livros, cada um com o seu perfume, a sua história, o seu pedaço de sonhos e de pecados. Vou saber dizer todos os nomes que tiveste e guardar o sabor que todos eles deixaram na minha boca. Permite-me que te use, que corra para os teus braços e respire longamente o teu travo a mundo novo. Até me saciar de sonho tornado realidade. Para que não se dissipe em mim a memória do teu olhar entrecortado pelas gotas de nevoeiro. Por isso, te escrevo, desenhando as linhas do teu corpo, para me perder quando precisar de me encontrar e saber-te real, algures nesse mundo, longe de mim.
Ficamos para sempre ligados aos lugares onde fomos felizes.

Obrigada Budapeste.