segunda-feira, novembro 20, 2006

Viperina

Fotografia em www.fotolog.com/vanish_ladies

É o teu riso, que outrora fustigou as cordas vibrantes da minha felicidade, o teu olhar perspicaz, despindo-me os medos e ansiedades. Esse teu tom doce e a carícia que pousas, quase por descuido, femininamente no meu ombro. São as promessas de eternidade ecoando no meu peito esvaziado de toda a ternura por ti. Sou eu, frágil na minha intimidade, diante do teu dedo acusador mascarado de elogio, da tua requintada ironia e crueldade. E quem nos visse assim, braço dado, sorrindo pela rua, diria que a amizade resiste às tempestades do ciúme doentio e da paixão. Di-lo-ia sem se aperceber do rubor escaldando-me a face e o coração apertado, tão pequeno, contra o desgosto e da máscara vitoriosa no teu rosto, que nunca deixas cair. Sacodes-me com a ponta da tua unha cuidada e pensas que assim te consegues livrar dos fantasmas da inveja que te esmagam a altitude. A autenticidade faz-te sombra? Talvez não te sintas suficientemente boa. Serei eu só o pretexto? Penso que terás visto em mim aquilo que desejaste ser.
Tens uma forma cadenciada de atacar, seduzindo-me cortesmente para o teu ninho de intrigas e traições, fazendo-me acreditar num passado que foi sempre só meu. Quando me tens, bem presa entre na tua teia, sibilas palavras pontiagudas e fá-lo de com uma voz melíflua, tão delicada que pareces cantar. No sangue derramado, cospes o teu veneno e ficas, recostada, a saborear a contorção do corpo moribundo, amordaçado pelas mãos da vergonha e do constrangimento social. Pensas que assim neutralizas o poder que, distraidamente, emano sobre ti. Eu olho-te, já sem que a íris se me raie dessa estranha espécie de dor que é a desilusão. Olho-te, atentamente, analisando-te sem carinho ou compaixão. Retiro o espinho que deixou a tua passagem e a lágrima seca por não haver rio por onde correr. Já em ti vejo pingar o ácido que trazes na língua, percorrendo-te a alma de calafrios. Aliviou-te o que disseste, o que fizeste? Permite-me ousar dizer que não. Vejo-o no teu sorriso macilento, ainda que o olhar continue a manter aquele rasgo viperino que, por descuido, se pode confundir com vitalidade. Para alguém tão inteligente até que demoraste a perceber que o que te intimida não é a minha presença, mas a ausência dela em ti. Assim, serei sempre o que nunca conseguiste ser, enquanto tu te aninhas na tua mediocridade. Desculpa-me a sinceridade, para hipócrita já basta essa dança de cortesias que representas tão bem.
Tens o jogo na mesa, as mangas arregaçadas, como sempre estiveram. O meu ás é, precisamente, a despretensão de querer ditar as regras. Vou continuar a aceitar os teus falsos dizeres e os teus truques sujos e a ignorar o brilho malicioso acautelando-te os passos. Não quero saber o quanto de prazer tiras disso se, para me magoares, precisas que eu te deixe. Já houve dias em que bebi sofregamente as palavras da tua boca, em que arrisquei deixar-te entrar. Agora a porta está fechada, para ti há só restos ou nada. Nunca poderei ser a ponte para a tua felicidade. Nunca, debaixo dos teus pés, te farei uma pessoa melhor. Tenta aprendê-lo por ti, o quanto antes. Para mim, és apenas um ser abandonado à sua própria humilhação, um pedaço desfigurado daquilo que pudeste ser. Compreende que sugares a seiva que corre sob a minha pele não reinventará a tua. Não sou um obstáculo, tão só uma realidade com a qual tens que saber viver. Se para ti isso é demais, minha querida, já não é um problema meu. Para mim, chega de enredos e de mentiras. Não quero fazer da minha vida um teatro. Deixa-te de erguer moinhos de vento, um dia já te quis tão bem… Tens o segredo do carisma por entre as mãos, mas ele vai-te escorrendo pelos dedos em cada manhã que escolhes o caminho mais fácil. A ambição, a sede interminável de monopolizar a vida dos outros, cegou-te os olhos para o essencial. Procura-o em ti. O meu papel na tua vida acabou por aqui.


terça-feira, novembro 14, 2006

Pequenas gotas de cristal


Houve quem lhes chamasse pequenas gotas de cristal
Pérolas encobertas nuns lábios apertados.
Quem lhes escrevesse poemas,
Quem lutasse e enlouquecesse por elas.
Houve quem morresse por as acreditar.

Na sua eterna juventude de seixos rebolando pelos séculos, as palavras conservam essa beleza ousada que inebria loucos e poetas, umas vezes cruel, outras doce, sempre capaz de render uma vida à devoção. Se me perguntassem se as amo, diria que talvez tenham sido a minha verdadeira e insolúvel paixão. Se me perguntassem se viveria sem elas, perguntaria de volta se é possível viver sem alma. Talvez seja, como um junco flutuando despido de vontade ao sabor dos caprichos do vento. Mas, em mim, as palavras fazem vibrar as cordas enferrujadas das emoções. Gosto de ficar de olhos fechados, sentindo-as escorrem-me como beijos pelas curvas e recantos das recordações, de correr atrás delas, rindo e desesperando. Faço-as acontecer, um poder que não é só meu. Há nelas uma qualquer vontade de nascer. Quando é hora, desprendem-se do carnal espectro da minha mortalidade e pingam sobre o papel, deixando para trás apenas aquele perfume quase imperceptível a jasmim dos sonhos que nos acordam à noite e se confundem com a realidade. É inevitável pensar nelas, revivê-las, reinventá-las, amá-las até à inconsciência. Ter sobre elas um insensato sentimento de posse, cunhá-las como impressão digital. Rodeá-las de segredos e chaves secretas, códigos complexos e enigmas indecifráveis, trancá-las sob a sombra obscura dos sentimentos jamais confessados. Para que nunca sejam de ninguém tanto como minhas. É nelas que se liberta a minha ténue humanidade para que eu, quando, como folha estaladiça, me despedaçar sob o peso inevitável dos anos, seja fada saltitando a minha derradeira essência por estas linhas.
Ando cega, escutando-as a toda a hora. Vejo-as espreitar do bolso do casaco castanho que se agita ao fundo, de um olhar felino, de um meio suspiro que juro que quase ouvi, mas as palavras são ninfas infantis que gostam de inventar jogos de faz-de-conta. Afinal de contas, é de mim que elas brotam. Por isso, dispenso o mundo por agora. Preciso de estar com elas. Penso-as a dormir e sonho-as acordada, embalo-as o tempo todo, porque elas são a mais profunda expressão do meu mundo, um reflexo do meu ego. Rompem-se-me do peito com angústia e ternura, com a violência de um grito incontido, manipulam-me o sorriso, não me deixam descansar e eu devo-lhes uma total lealdade. São como crianças, dormitando ao sol e à chuva da minha intempestuosidade e quem as vê assim, tão frágeis pedindo para acontecer, não lhes sabe a tirania. Queimam como droga corroendo-me as veias, tatuadas com a voluptosidade do fogo na minha pele, são pedaço de mim para onde quer que eu vá. Desenham cortinas sobre os meus passos, alheios aos dias, de tão perdidos na perpétua necessidade de lhes dar vida. Estão tão entranhadas que às vezes já nem sei se escrevo para as viver, se vivo para escrever. A tudo, eu procuro-lhe as palavras, os sentimentos como corpos mortos dos quais disseco qualquer coisa para dizer, uma observação constante de um mundo que se faz daquilo que penso. Há mais de construção do que de realidade, mais de interpretação do que de autenticidade. Não é isso que afinal fazemos a toda a hora? Condicionar as vivências por aquilo que sentimos e queremos ver. O amor toldando-nos os sentidos, as doutrinas e supestições, crenças e tradições. São as palavras o meu filtro de memórias, canalizando tão só aquilo que desejo reviver. E, ainda que não deseje, por vezes é imperativo.
É como digo, elas mandam. Escolhem as pessoas e as datas, apoderam-se-me do espírito e da mão e criam novos mundos. Por isso, digo que não saberia viver sem elas, sem esse cordão invisível sobre o qual equilibro cada lufada de vida, que guia os meus passos, que dá materialidade ao meu ser, tão imprescendível como respirar. Não saberia, pois. Sou delas, ausente num permanente estado de embriaguez que me deturpa as imagens. Se no meu espelho, fores mais gordo ou mais alto, se os teus traços flácidos de repente tomarem o vigor de um belo princípe encantado ou te nascer uma veruga mesmo no meio do nariz, não me leves a mal. É da intensidade que se geram as palavras e a normalidade nunca convenceu. As palavras são lendas que nascem do rodopiar imprudente do mundo, exigentes nas suas manobras de diversão, alimentadas de pequenas mentiras. Mas as mentiras na boca delas são verdades. Não me leves a mal. São assim as palavras e eu serei sempre escrava do "palavrear".



domingo, novembro 12, 2006

Diz-se por aí...

Diz-se por aí da vida os maiores disparates. Como se se pudesse encartilhá-la e vendê-la às lições! Que é do grito dos pássaros, pergunto-me eu, do leve sibilar das asas roçando contra o tecido dos vestidos? Aos olhos da diferença formal a que nos prostramos, somos todos irritantemente iguais, formiguinhas correndo de um lado para o outro, tentando açambarcar cada pedra e pauzinho com os quais nem sabemos bem o que fazer. É tanta a inutilidade obstruindo-nos os poros que um grão de areia no sapato errado atiça logo a fúria dos deuses, eis que se urge a tempestade e lá andamos nós a correr para o psicólogo, que é um ser tão confuso e indeciso como nós. Que é do azul irrompendo dos dedos, das conversas que enganam as horas e, de tanto se darem aos ouvidos atentos, deixam os lábios a doer? Um dia, damos por nós confortavelmente sentados no nosso trono de pedras e pauzinhos e sentimos que, para além da intempestiva majestosidade da muralha que construímos à nossa volta, há um ser frágil, que nunca tivemos tempo de conhecer. Nesse momento, amaldiçoamos a vida que não soube esperar por nós, os anos que se consumiram na febre de tentar ser alguém. Ser alguém. No novo dicionário dos afectos, ser é sinónimo de ter. Que é das discussões acaloradas, dos abraços apertados, das lágrimas sinceras lavadas por entre o granito das ruas, porque não se escolhe quando vai chover? Porque nos escorrega o tempo entre os dedos e a materialidade das coisas nos vai iludindo o coração desassossegado? Há uma sucessão de perdas na perpétua insatisfação que nos corrói os nervos, a frustração da espera por coisa nenhuma, um vazio insuprível nos passatempos como ópio para a solidão. Essa solidão que nos vem colada às penas, como um brasão, uma herança de rostos desconexos espreitando por entre os segundos desprevenidos do nosso estar. Efectivamente, não gosto de aparências. Representamos as pessoas que somos e que queremos ser, mas quanto há de autêntico em cada gesto? Casualmente descuidado, levemente despenteado... É como nos tivessemos transformado de repente nos nossos próprios, permanentemente atentos e profundamente aborrecidos, editores de imagem. Que é das longas viagens pela Europa, chinelos e mãos nos bolsos, o estômago revolto na sede do conhecimento? Temos que representar para disfarçar a lacuna de tudo o que não sabemos sobre nós. Porque a televisão nos poupa o trabalho de estarmos connosco. Temos mais que fazer. Deus nos livre do ócio! Temos que nos sentir úteis, é uma certa forma de status. Que é dos pensamentos soltos, voando sobre o papel, das eternas filosofias construindo explicações improváveis sobre o universo, das angústias profundas, das insónias de paixão que servem de berço para doces sonetos infelizes? Somos todos colagens. Um pouco daquela actriz, mais um pouco do outro jogador de futebol e até do humorista a que achamos uma certa piada. Apetece-me arrancar pedaços, rasgá-los com os dentes, quando um deles sangrar, saberei que é genuinamente meu. Estou cansada de sorrisos plásticos, de espelhos que se reflectem infinitamente, de todos os complexos aparelhos que montámos à nossa volta para nos esquecermos de procurar quem somos. Quero o sujo e o feio, o perdedor e o errado, porque fazem parte da vida. Quero atravessar os espelhos que se imitam e descobrir a que sabe a verdade ao contrário. Perceber a humanidade descolando-se de um olhar que o botox, à revelia das leis do universo, tornou eternamente jovem, encontrar o charme oculto num nariz imperfeito, na madeixa fora do sítio e na voz engasgada. Quero um punhado de pensamentos desordenados, um coração sobressaltado, um sono desassossegado. Que é dos olhares que se demoram nos trilhos já tantas vezes percorridos de um rosto, dos abraços que engavetam recordações, passes de mágica, a alquimia dos sentidos? Quero a fúria do mar debatendo-se contra a areia molhada dos afectos, uma guerra de rendições e de suspiros tolos. Quero ver o mundo cor-de-rosa, andar de pernas para o ar, quero encontrar a vontade desesperada de estar contigo, voltar para casa com os lábios cansados de inventar conversas, recriar teorias improváveis para o universo e ficar só a imaginar que todo ele pára para testemunhar esse momento. Sê a linha imperceptível dos meus pensamentos, rouba-me aos segundos um pouco de atenção, desperta-me da nostalgia da espera por coisa alguma, como febre doentia para os meus sonhos ébrios, fascina-me, prende-me e não me deixes dormir. Quero sentir a autenticidade violenta dos beijos tocando as teclas de aço dos meus sentimentos e ficar a ouvir-te desafinar a melodia de um amor imperfeito. Vou morder o isco e sair impune, pecando a ousadia de me sentirviva, profundamente viva, imprudentemente viva.