quinta-feira, abril 26, 2007

Curta metragem

Voltaram os olhares empoeirados, os casacos, toda a ridícula panóplia de dias cinzentos. [Os lábios em câmara lenta, remoendo palavras mortiças, inchando suspiros pardacentos.] O que oiço é tão pouco quanto o silêncio fantasmagórico da fita a rodar e, no canto, o protagonismo apagado dos teus dedos mordiscando o papel amarrotado. [Não vou fugir da chuva, não há como…] Faz parte do cenário.

Tenho os átomos exasperados de uma febre desconhecida que me vai sangrando as glândulas. Arranho-te a insanidade num sorriso bem apertado, até o espartilho da polidez te verter o argumento. O meu papel é simples, cruzo a rua ao lado, o guarda-chuva rebelando-se aos caprichos do vento. Tudo a preto e branco. [Já oiço a calçada gasta dedilhando os meus passos.] Provavelmente, ninguém vai reparar.

Meio segundo depois, longe dos grandes planos do teu olhar ensaiado, o café da esquina vai parecer-me convenientemente consolador. Sentar-me-ei. Vou pedir um chá a fumegar e observar os grafittis que desfiguram as paredes da cidade. [O mais certo é concluir que a amo assim, negligentemente abandonada às unhas que lhe desgarram as horas mortas, cicatrizes que vão lembrando que, por ali, alguém viveu.] Guardo-lhe as saudades, pago a conta e saio de cena. Tenho a certeza que o mendigo, gentilmente, cantará Tom Waits, arrastando as notas embriagadas da minha melancolia. Hei-de lembrar-me de não passar por perto, baixarei o volume das emoções, como manda o figurino. [Será tudo como antigamente, os ecos vagos da casa vazia, a fotografia tosca a trair a textura granulada dos teus poros matizando o ecrã.] Não vou deixar as portas baterem. Perdi a deixa do desespero, não vi as sombras focarem a premonição que calcorreava um trágico final feliz. [Afinal, é o que se espera.] Esta é história de passar em horário nobre. Desapaixonadamente, tudo o que resta será politicamente correcto.

[Adeus...]

7 comentários:

happiness...moreorless disse...

wow!! está muito bom mesmo...

um beijinho

filipelamas disse...

Obrigado por fugir ao politicamente correcto!

pecado original disse...

qualquer das formas a tua escolha seria essencial...

Joaninha disse...

Está excelente. A imagem está muito bem escolhida e o próprio texto cria uma imagem demasiado real... Que é, muitas vezes, a preto de branco.

Marta disse...

"baixarei o volume das emoções, como manda o figurino"

Aqui está um bom exemplo de pq NÃO quero ser politicamente correcta!

Beijos

Clara Mafalda disse...

queria tanto ver um filme com as tuas palavras. sao bonitas demais x')*

Sandra disse...

Parece mesmo história de passar em horário nobre.Mas tudo o que não é apaixonado não é para nós geminianos... deve ser por isso que fugimos ao politicamente correcto.
Bjinho grande minha linda***