segunda-feira, abril 02, 2007

Poema em branco


Estranho-me, no estremecimento lânguido e inoportuno de uma adolescência tardia. Se amanheço, o sol tímido que me vai escapando pelos lábios entreabertos cola-me arrepios de orvalho fresco à pele. Os mergulhos nos teus olhos não me curam a ânsia, não me calam o desejo. Na febre das vogais, esqueci-me da pontuação. É uma espécie de insanidade.

[Tudo o que eu quero é verbalizar.
Desculpa se te uso como pretexto.]

Puxo o fio das recordações, com cuidado, não se vão desfazer os nós. O galgar das emoções ensurdece-me, mas, detrás do biombo, só as vejo pelo canto do olho. Espalho-as no pátio, longe das lágrimas, para que não me incendeie a saudade. Vasculho pessoas, disseco lugares, construo o puzzle dos momentos, mas fica sempre a faltar uma peça do que sou.

[Se não for demais, lembra-me de nós.]

Sento-me, a enlouquecer o tiquetaquear das perguntas. Presto contas ao relógio das respostas que não te dei. Já houve tempos em que a gula das conversas ajudava à digestão dos pecados. Nesses dias, tu declamavas sorrisos com uma solenidade despropositada e eu via nos soluços da ternura uma inócua poesia. Hoje os versos são incompletos, os sentimentos já não rimam. Deveria haver quem me dissesse que é feio mudar de opinião.

[A métrica está desencontrada, a sonoridade vai em contramão.]

Talvez eu fuja. Assim não temos que lhe dar um final. Visto o meu melhor sorriso e saio. Talvez eu finja. Aperte a mão aos fantasmas, fumando frustrações com um ar displicente. [Vou rasgando folhas sem pressa, ainda está tudo em branco.] Talvez me ria. E te acene, ignorando o teu olhar insolente. À força de guardar vidros e conchas que rasgaram a carne, aprendi a emparelhar pulsações obstinadas. Posso esconder-me nelas e praticar uma maturidade desajeitada. [Espalho a tinta, num momento de sórdida lucidez.] Não contes as sílabas, numerei as palavras do avesso. Amanhã as conjugações serão outras.


Não está tempo para poesias.

13 comentários:

filipelamas disse...

O tempo nunca está de feição para poesias. Como elas são pedaços de vida e como nunca há tempo para viver, a sua afirmação é apodíctica. E de uma grande violência. Que nos acorde!

Marta disse...

Não há tempo para poesias? :)
A mim os teus textos parecem sempre poéticos.
Mais um ir sem ir?
Ou um ficar sem vontade?

beijo

Clara Mafalda disse...

gostava de ter pretextos como os teus, de verbalizar como tu, de deixar o sangue ferver-me entre os poros e jorrar pelas palavras fora. gostava de as sequenciar como tão bem o fazes e de dar tanto de mim àquilo que te leio. gosto-te.
*

Anónimo disse...

Menina,como é talentosa!! sabia?!?!

Tudo o que possa dizer ficará aquém do que acho (e sinto) ao ler estas palavras...Parabéns!

Anónimo disse...

há sempre tempo para um verso para uma palavra a poesia nao sao versos conexos a poesia é viver há sempre tempo para viver talentosa+

S. disse...

marta,

Mais um ir sem partir,
Um ficar sem nunca ter chegado.

[Aprendi a gostar de finais em aberto.]

A letra da imaginação é mais dócil aos humores deste momento do que a realidade.

Marta disse...

Eu tb uso a imaginação. Umas vezes para descrever o que vivo, outras para "viver", o que não sinto e não tenho!

Joaninha disse...

Gosto em especial daquilo que está escrito em parenteses recto... Será o que é realmente verdade? "Desculpa se te uso como pretexto". Bem escrito!

Cusco disse...

Olá! Aproveito para deixar os votos de uma Santa e Feliz Páscoa!
O texto que acabei de escrever tem por objectivo homenagear todos os meus familiares: Os vivos, os mortos e os que estão por nascer ainda. O mundo é muito, muito pequeno.. … quem sabe se esse cheiro a flores não te persegue e protege a ti também….Para Sempre!!!
Até breve
SE DEUS QUISER

Suspiros disse...

Não importam os pretextos. Sobretudo que haja sempre uma peça desconhecida para ter de encaixar no puzzle da nossa (poética ou nem por isso) existência...

*****
Uma Santa Páscoa!
:)

x disse...

é quase um grito de libertação.mudo talvez.não esté tempo para poesias, mas está tempo para a liberdade de consolidar uma escolha, sem dúvida.quanto aos finais em aberto, procura, ao perceber que não tens chave para essa porta,fechá-la com um sorriso.sem olhar para trás.*

Toutinegra Futurista disse...

Que o tempo continue a não estar de feição, desde que continues a escrever!

White Castle disse...

Tens um jeito fantástico para mover e brincar com as palavras.... Lindo! Sou gulosa pelos teus escritos! E Adoro-te! Saudades, mts saudades de jogar conversa fora e dentro.... Tenho saudades de anoitecer e amanhecer contigo.... ;)