quinta-feira, abril 12, 2007

Pecados íntimos


Dizem dela que matou o próprio filho. Que o arrancou à unhada do ventre inchado, que o embalou, moribundo, até o pequeno corpo arrefecer e os olhos entreabertos se lhe turvarem, num derradeiro esforço de vida. Dizem que a criança estava deformada, o peito minúsculo profanado por uma meticulosa facada. Encontraram-no embebido no seu sangue, sufocado por um ódio que não fez por merecer. Dizem que, durante todos aqueles anos, ela não chorou. Ninguém suspeitou.

Estilhaço-lhe o olhar azul, mais brilhante no ecrã, atolo-me de nódoas ressequidas, de culpas que não sararam, medos que um crime hediondo não matou, mas a única coisa que descubro é que o olhar dela é igual a qualquer olhar. À medida que lhe palmilho a face provocadoramente jovem, os cabelos luminosos, os lábios trémulos vou ouvindo as contracções do silêncio sepulcral que o passado lhe enterrou nas têmporas. Penso na ironia da natureza, irrigando na beleza voluptuosa que cuspiu o seu corpo impúbere toda a sórdida fealdade do ser humano. Que importa se ela tinha 15 anos, se a gravidez não era desejada? Chamo-lhes circunstancialismos, contornáveis decerto, não fossem os sonhos. Esses sim, os sonhos são os homicidas com a cabeça a prémio. Um caminho previamente delineado, uma rota rasgada com persistência na pedra incólume que lhe era a promessa imperdoável de um futuro de portas escancaradas. Um passo mais à frente e as linhas que lhe romperam a sanidade teriam atado outro destino. Mas a bússola das expectativas deu-lhe a direcção errada, as coordenadas invertidas trocaram-lhe os céus e, quando deu por si, tinha bichos marinhos a colarem-lhe mágoas viscosas aos tornozelos. Da índole, nunca lhe saberemos a cor. A história está repisada e os contornos enlameados têm o odor acre e quase imperceptível das mãos de um advogado ardiloso. Expedientes de uma justiça tardia. Que importa?

Depois dela, vejo claramente. Os olhos não espelham a alma. Os anjos não têm que ser bonitos. O mundo não é um filme de cowboys e os papéis não estão, à partida, claramente definidos. Cada pessoa é, em todos os momentos, as suas escolhas.

Quantas pessoas já apunhalaste? Quantos valores abortaste? Quantos erros escondeste no canto mais escuro do armário? Se olhar dentro dos teus olhos, se os fixar no ponto exacto em que se torna insuportável o contacto, se eu te trespassar até a alma queimar, vais contar-me os teus fantasmas? Todos temos pecados íntimos, corpos a apodrecer, sacos no lodo que nunca viram a margem, seladas e inquebráveis caixas de pandora, todos.

Quão turvo é o teu rio?

8 comentários:

Anónimo disse...

qualquer adjectivo que te distinga num grau superior ou inferior em qualquer circunstância, com ou sem defeitos, perfeita ou imperfeita, certa ou errada... EU gosto muito de ti, TODOS gostamos!


beijinho grande

Marta disse...

Forte... brilhante!

O meu rio é turvo, bem mais que os meus olhos... já apunhalei mta gente, já fui apunhalada mtas outras... partilho o meu dia com mts fantasmas, e qd chega a noite... bebemos juntos! Mas ainda me posso salvar... lutarei por isso, luto, diariamente, tentando ficar mais límpida!

Bom fds.

Beijo

Joaninha disse...

O mundo não é um filme de cowboys, dizes tu. Eu acrescento - também não é um conto de fadas! E, julgo, ninguém se poder orgulhar de ter um rio cristalino!

alguem disse...

"Cada pessoa é, em todos os momentos, as suas escolhas."
100% de acordo, as nossas atitudes definem o nosso futuro.
Beijo **

Suspiros disse...

Os fantasmas nascem das tais circunstâncias concretas em que o poder de decisão nem sempre se encontra do nosso lado. Há pesos que pesam ainda que não tenham de pesar. Talvez já tenha traído as expectativas de alguém, talvez tenha já sido a advogada ardilosa, não sei ao certo. Mas sei bem que gostaria muito que todos(as) aqueles(as) que um dia cruzaram o caminho comigo tivessem pautado o seu comportamento pelos valores com que (ainda) pauto o meu (sem pretensões de maior)...
:)
Beijinho
PS: Mais uma vez, um excelente texto.

Toutinegra Futurista disse...

Mais um excelente texto!
Todos temos o nosso rio de águas turvas e revoltosas.

Anónimo disse...

Como resposta à tua indagação, só posso retorquir que o meu rio segue o ciclo da natureza, ora calmo e cristalino ora revolto e turvo com o lodo que afluí a superficie em alturas de tempestade.
Párabens pelo excelente texto!!!!
1 beijo vviper

White Castle disse...

Pelo que me apercebi estás a falar duma história que passou na Oprah! O teu texto está muito bonito mesmo, até porque extrapola a situação em concreto... Mas aquela história tem contornos muito sórdidos que a idade não pode desculpar... Houve muitas coisas que não dá para entender por muito que seja explicado... Todos teremos pecados íntimos, é certo, mas espetar uma faca num recém nascido para que ele deixe de sofrer, é-me muito estranho... Contudo, gostei do apelo da menina, agora com 20 e poucos anos, para que as adolescentes tenham cuidados ao quererem iniciar a sua vida sexual e para que não tenham receio de contar aos pais... As cordas do destino por vezes torcem e partem... E sim, viu-se nos olhos dela que a sua pena não será de 6 anos, mas sim perpétua... Deu que pensar... E contudo é impossível não pensar, e se ela tivesse feito de outra forma?