domingo, dezembro 24, 2006

Água



Como um riacho, correndo silenciosamente por entre as pedras. Incolor, sem sabor. Quase pedindo licença para acontecer. É ser-se assim, mulher. Mas fonte de vida, força da natureza que move o mundo. Frágil, só no aspecto. Delicada. Submissa. Trauteando inaudivelmente a sua melodia triste. E não importa quantas barragens se construam, quanta areia se lhe roube… Não importa, porque a água haverá sempre de encontrar um caminho por onde passar e continuar a alimentar bocas secas e terras inférteis. É de uma bondade infinita, ainda que tão poucas vezes os olhos vejam nela para além do seu próprio reflexo.
Porquê, porque continuamos a estreitar-lhe as margens? Pensamos sempre que a descriminação está tão longe… E continuamos a desculpá-la, a fechar-lhe os olhos em nome de um pretenso respeito pela cultura e pela religião. Ainda que assuntos de bolso já justifiquem que se rompa esse tão oportuno respeito. Pois eu digo para quem quiser ouvir, o preconceito está-nos entranhado na carne. E de tão irracional eu me pergunto como nasceu. Já lhe chamei medo ou talvez ignorância… Mas nada – nada disso! – legitima a crueldade. Em certas épocas e lugares, enclausuramos mulheres em vestes brancas ou em burkas, matando-as em vida. No nosso mundo perfeito, aceitamo-las como supostas “iguais”, mas do resquício de divindade na mulher, que continuamos a tentar estrangular, resta muito pouco, enquanto as mergulhamos em medos, culpas e outros constrangimentos sociais. Invertemos as formas e da pureza natural da mulher fizemos uma árdua conquista. Já se contam muitos os nomes que lhe deram, aceitando-se sempre que o homem estivesse acima do bem e do mal e à mulher coubesse o heróico papel de manter-se imaculada, não obstante o pecado e a discórdia que carrega consigo. Eva, Maria Madalena, Helena de Tróia, Pandora… Em cada história, uma lição envenenada. É tão prático sacudir dos ombros uma responsabilidade que uma tradição milenar faz recair sobre as mulheres… É tão fácil…
Hoje vangloriamo-nos de termos dado às mulheres o leme das suas próprias vidas (que evoluídos que nós somos!), mas continuamos a apontar-lhes o dedo, a mantê-las presas a considerações sobre a sua sexualidade, a sua carreira e a educação dos filhos. Exigimos-lhes que sejam super mulheres, que se dividam constantemente para que nunca falte conforto e repouso aos seus homens. Não é também essa uma forma de prisão? Demos-lhe a escolha, mas barrámos-lhe os caminhos, manipulando-as frequentemente através da sua particular fragilidade… O relógio biológico. Não estará na hora de partilharmos efectivamente responsabilidades? Os homens que o desejam continuam a ser carimbados como ovelhas tresmalhadas, rotulando-os com anedotas machistas, confundindo justiça com feminilidade, calando-os à força do preconceito. São tantos os estratagemas… Instituições aceites pela sociedade e jamais questionadas sem que se levante um riso trocista e talvez aquele comentário boçal “feminista”.
Não pretendo luzes, nem passadeiras vermelhas, só me pergunto… Em que momento o branco amordaçou as cores dos saris? Qual é a ténue fronteira entre a beleza impoluta das deusas dos poemas e as mulheres que negligenciamos todos os dias? Porque continuamos a tentar controlar as forças da natureza? É uma batalha perdida, sempre o será. Pode ter custado muitas lágrimas, muitas vidas devotas a um sofrimento ímpar, quantos assassinatos a sangue frio, quanta maldade… Pode levar séculos, mas a água jamais irá parar.


Já agora... “Water” é um filme obrigatório.







9 comentários:

Anónimo disse...

MEDO...Querida, é o medo. Todos sabemos que a Mulher foi (e por todo o sempre haverá quem o tente)amordaçada porque o homem tem MEDO! Assim, criou com a sua força (e falta de inteligência)o mito do mais fraco. Desenvolveu o preconceito, a imoralidade, a injustiça, a maldade... e arrastou todas as gerações nessa crença. De uma bondade infinita, a Mulher concedeu, acatou... Perduou! De burra das cavernas passou a loira burra...e riu sempre! E eles...os homens continuam a fazer estatísticas; a mulher é mais feliz a cuidar do lar, não... a mulher é mais feliz a trabalhar fora, não...a mulher é mais feliz a trabalhar fora e cuidar do lar, não...e elas, as Mulheres vão deixando que eles (os homens) estejam entretidos com tanta reflexão! Laboriosamente trilham o caminho, com Amor, com trabalho, com determinação e com muita inteligência! O meu tributo à MULHER, a todas as Evas, Marias Madalenas e Helenas...
O mundo não será das Mulheres, há muito que já o é...eles (os homens) não deram conta. Vai demorar a perceberem, mas chegarão lá.
Para ti, Mulher Linda, o meu beijo mais doce!

alguem disse...

Gostei bastante deste texto :)

Aconselho o filme também, é daqueles que nos prendem ao ecrã até o último segundo, mesmo muito bom. :)
kiss **

happiness...moreorless disse...

uáu!! que texto, adorei...Parabéns!

Um Feliz 2007, com tudo de bom*

TP * disse...

estas palavras são mesmo todas tuas? escreves tão bem!!! sempre textos tão filosóficos! ;) desejo-te um 'optimo 2007, com tudo de bom! * * *bjinho

pecado original disse...

Excelente texto amiga.
assino por baixo.
Mas seremos sempre as escravas e as deusas.
Beijinho e bom ano.

Sandra disse...

Texto maravilhoso miga=)!
Completamente lindo e que transmite toda a força das mulheres!
Bjinho grande***adoro-te querida

Clara Mafalda disse...

Não tenho passado por aqui e desde já não só peço imensas desculpas, mas explico porquê. Como o meu pc digamos que teve um retrocesso até à 1ª geração, sempre que entra num blog com musica, bloqeia. Daí ter-me privado tanto tempo de palavras tão maravilhosas.
É da maneira que hoje me 'farte' (e como tão bem me fartei) de contemplar o incrivel dom que tens com as palavras. A incrivel magia de as tornares tão reais ao ponto de quase conseguir tocá-lasç. A tua sensibilidade imensa, o teu toque, a tua cor .. o quase cheiro que dás a cada letra. fenomenal. diria mesm, brilhante.
tu sim, és um exemplo de mulher.

beijinho minha qerida
*

pecado original disse...

Os signos são como a agua :)

Light disse...

Assim como agua que corre para o mar,tal riacho na primavera com a força de chegar,assim és tu minha querida,assim somos nós mulheres...

que saudades de te ler...e aceito a sugestão