quarta-feira, março 14, 2007

The wind that shakes the barley


The wind that shakes the barley é, como a canção que lhe empresta o nome, uma viagem melódica e intimista pelos meandros dos sentimentos que unem e afastam um povo. Na linha das obras anteriores de Ken Loach e assinado com o seu traço controverso de agitador de consciências, o filme vai recuperar a cultura irlandesa, profundamente marcada por uma contínua luta pela independência. É esse espírito inconformado, resistente, idealista, que retrata o realizador britânico. Retratar é a palavra adequada. Ken Loach é, efectivamente, um dos herdeiros do realismo social, preocupado em fotografar as injustiças, capturando sensações reais. A intenção é criar no espectador um sentimento identificação, de proximidade com esses rostos anónimos em quem pinta um nome e uma estória. Assim, sem máscaras. Sacrifica-se a estética em prol da violência da filmagem, que se espera crua, opressiva. Porque a realidade não foi bela, quer-se dos sentimentos que sejam nus, despidos de artifícios e pretensões, servidos ao mais puro sabor do sangue e das lágrimas. Loach não tem medo de mostrar as mãos sem trunfos, abdicando de planos largos e de efeitos especiais, para que a atenção nunca se desprenda do horror, que é o fio condutor de uma história que fala da resistência do Exército Republicano Irlandês (IRA), mas que trespassa, ardendo como sal numa ferida, todas as guerras que já se travaram pela independência de um povo.
Já antes Ken Loach terá chocado audiências com as suas mensagens políticas radicais. Sem pudores, admite, é uma autocrítica. Contra o imperalismo, contra o poder que cega os Homens. Após receber a Palma de Ouro que laureou o filme em Cannes, Loach declarou que pretendia que o filme fosse um primeiro passo na reconciliação dos ingleses com o seu passado. Às pessoas que lhe duvidaram o patriotismo, disse, sem pretensões de maior, que atacar os erros e as brutalidades dos nossos líderes, é, acima de tudo, um dever.
Outros antes haviam traçado este trilho. Michael Collins é um filme com alguns pontos em comum. Mas Loach abdica das figuras históricas, personalizando o conflito em homens e mulheres vulgares. Por isso, descentraliza-se para uma região rural, para personagens que se sentem de carne e osso e transpõe o drama para as próprias vivências de quem o vê. Se, algures no mundo, há sempre alguém a lutar e a morrer pela independência de uma nação e se ainda pudemos aprender alguma coisa com o passado para mudar o presente, então é de todo vital que as pessoas se vejam do outro lado da tela e sintam arrepiar-se-lhes na pele a dor que é alheia, mas que transborda fronteiras. Enquanto vemos o filme, não nos abandona a sensação de estar a espiar conversas. E nem é muito o que se explora o drama, a repulsa, o medo. Há quem acuse Loach de ter deixado morrer-lhe o potencial, numa abordagem que não tira partido de toda a emotividade que vem, indissociável, da história que conta. No que toca à minha sensibilidade, Loach optou conscientemente por um estilo depurado, uma linguagem seca de cores e traços que contrasta com a verdura exuberante das paisagens, como que falando de uma realidade deslocada, e desculpando-se por essa tristeza inesperada que não deveria acontecer. Esta é uma luta de pessoas simples.
Loach tem um lugar ao sol para todos aqueles que construíram uma história. Por isso se preocupa tanto em mostrar todas as facetas da mesma revolução. Fala de mulheres, não na forma clássica de as representar, sentadas, chorando as dores que eram de todos, mas que os homens, no torpor da infâmia, tinham que calar. Dessas sim, no respeito da dor impotente, mas é às mulheres que lutaram com as armas que tinham ao alcance, que transportaram mensagens, que se envolveram nos tribunais e na política, que eram fonte de informações e alimentavam emboscadas que Loach faz uma ode; às mulheres que tomaram as rédeas do destino de um país e nele participaram tão activamente como os homens que mataram e morreram por ele. No mesmo tom, a religião não é deixada ao acaso. Não poderia ser. Irlandeses são fervorosos e o poder da Igreja é inegável na sua História. Muitos dos latifundiários que apoiavam os ingleses eram protestantes e os rebeldes, católicos. No entanto, esta coesão é deposta pelos acontecimentos e é pela voz do padre católico que se semeia a discórdia, que viria a provocar a cisão dentro do Sinn Féin, levando à guerra civil. Porque a Irlanda é um país de contrastes, unido no desespero, profundamente desmembrado nas suas crenças.
Durante todo o filme, travamos a luta de Damien e Teddy O’Donovan, dois irmãos, cujos caminhos se entrelaçam só por um momento, para logo seguirem direcções diferentes. Ao acompanharmos as acções da unidade móvel de guerrilha, sentimo-nos parte da mesma realidade. Sentimos a falta de preparação, a força da revolta, o grito de terror que lhes enevoa o horizonte. No entanto, a narrativa é desiludida, questionando o poder do amor, amargurando-se com a ambição dos homens. Pergunta-se porquê e a que leva. Se há triunfo, se há Brisa de mudança, como sugere a tradução portuguesa. O ódio é corrosivo e os ideais implicam sacrifícios. Às vezes, de valores. Não se julga, aqui. Mostra-se. É a natureza humana no seu estado mais puro. Mais do que um testemunho histórico, The wind that shakes the barley é uma reflexão acerca do impacto da guerra nas pessoas e nas relações familiares. Ken Loach é um romântico. Fala de Republicanos, que lutam por uma nação de trabalhadores e camponeses. Fala do governo do Estado Livre, primeiro disposto a vender-se aos homens de negócios para poder financiar as armas e, mais tarde, institucionalizado. Fala de extremismos e incongruências. De ideais repudiados no deslumbre do poder. Fala de paixão e de racionalidade e de como a união destes jovens em torno de uma mesma aspiração pôde quebrar-se. Nauseados de injustiças, juntaram pedras e venceram Golias, mas deixaram-se fragilizar no seu próprio seio e foram apodrecendo. O mesmo amor, a mesma vontade, caminhos diferentes. E o peso dos mortos. A toda hora, o peso dos mortos.

Agradeço ao cineclube da FDUP, que me lançou o desafio de escrever o comentário crítico ao filme, lançando-me num mergulho intenso na História irlandesa e na alma dos Homens que lhe vêm escritos nas entrelinhas.

4 comentários:

filipelamas disse...

Gostei muito da análise! Também, em tempos, escrevi, no tretas e letras, umas linhas sobre o assunto, embora a anos-luz da profundidade que apresenta.
Parabéns!

pecado original disse...

E agradeço-te a ti pelo deslumbre de uma sessão de cinema entre eu, tu e o pc.

SEmpre a gostar da tua presença.

um beijo

Suspiros disse...

Os teus textos são sempre muito interessantes e, por sinal, muito bem escritos. Este não é excepção. E cativaste. Verei o filme!

:)

PS: Se tiveres oportunidade, vê O Bom Pastor. É mais uma faceta da segurança personificada num autor cujas atitudes provocam em nós reacções ambivalentes... Vale a pena! ;)

S. disse...

Obrigada pela sugestão, suspiros. Ontem vi O Bom Pastor. Curiosamente. Gostei do recorte histórico, da correcção linguística, da fotografia. Deixei-me envolver pela alma conturbada de Lena (Cate Blanchett), pelo jogo intelectual, pelo suspense que se mantém intacto até ao último momento. Uma sugestão requintada, sem dúvida. Obrigada.

Obrigada a quem passa e deixa a sua marca. A quem conta uma história que se acrescenta à minha. Obrigada pela atenção, pelo carinho. Obrigada também por me mostrarem o caminho até aos vossos recantos. É um prazer partilhar convosco o mundo delicioso das palavras.