segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Pensamentos soltos



Era do barulho arrepiando-me o vómito que eu estava farta. Por isso, construí um muro de certezas e pus-me do lado dos sensatos, daqueles que viam o que mais ninguém queria ver, os que assumiam as verdades como elas são. Fiz-me heroína de história alheia, mais tolerante e mais compreensiva, mas não por acreditar num Homem melhor. Fi-lo porque me enojar a hipocrisia, por pensar que da comunidade é simplesmente o dever de cuidar o melhor possível das cicatrizes de alguém, certo ou errado. Nunca foi uma questão de opção o que argui, queria tão só dignidade. Pedia respeito por uma dor que não é de ninguém senão de quem a traz no ventre, por uma vida que merece amor desde o primeiro instante. Para que mais ninguém se sentisse sozinho, enquanto houver mãos para estender. E estive tão segura da minha opção que me doía a alma ver da vida feita roupa lavada em praça pública. Deixei-me cegar ao medo de mudar de ideias. Fechei os olhos e esperei que tudo passasse rápido. Ganhámos (todos?). E só então, sentada na sala vazia, depois de passar o cortejo, ouvi as lágrimas que amarrei durante tanto tempo contra a arrogância e perguntei-me se da guerra que travámos não saíram apenas feridos. Espero, ardendo na febre da desolação, que tenhamos escolhido o caminho certo...

E, enquanto a sociedade navega para outras águas, a vida de todos os dias continua na sua habitual placidez. Porque até a vida e a morte precisam do bendito papel («que papel?», o papel). E lá vou exercitando a minha capacidade de me rir do ridículo, enquanto um burocrata dos serviços saltita pela sala apinhada de gente cansada e mal-humorada para abrir a porta a cada pessoa que resolve sair. Isto porque é de extrema importância certificar-se de que ninguém entra depois da hora de serviço... Ou quase... Afinal, talvez o relógio esteja avariado... Também que diferença faz se encerram às 16h ou às 15h45? Porque é que as pessoas hão de andar sempre tão insatisfeitas? Faz todo o sentido, claro. Alguém que acompanhe as pessoas à porta, serviço de qualidade, não é o que se elogia no estrangeiro? No entretanto, os processos continuam a acumular na secretária, diante do olhar vazio do resto dos burocratas, que agora estão a cumprimentar a recém-mamã que chegou com o seu bebé. Não importa se o viram ontem, certamente que têm considerações a fazer sobre como o petiz «está grande e esperto». E lá vai mais uma pausa para café, porque é cansativo isto dos papéis («que papéis?», os papéis). As pessoas mexem-se, impacientes, e tossem. O velho do restelo vai-se aventurando a transformar os dizeres entredentes em críticas acesas, mete convesa com toda a gente, tudo está errado neste país. E começa na funcionária que enrola o cabelo com ar sonhador, enquanto fala ao telefone. Assuntos de trabalho, certamente. Quaisquer duas horas chegam para arranjar o papel. Isto se não tiver que voltar amanhã porque falta o documento. A máquina das senhas avariou, por isso chamam as pessoas em voz alta. O único senão é que só conhecem a letra C. É pena que a maior parte esteja para a letra A, mas porque é que havemos de ser tão esquisitos? Chegou a minha vez. Nem acredito. Esboço o meu melhor sorriso, não vá a minha cara criar mais um obstáculo à obtenção do (precioso) papel. Se calhar, enganei-me na letra. Mas para que serve a entrega de documentos?, pergunto. "Para entregar documentos", ora lá está, obviamente. Faz todo o sentido.

7 comentários:

Anónimo disse...

Continua a escrever :) Há uma espécie de magia nas tuas palavras que eu sinto que vai crescendo contigo :)

Anónimo disse...

Bem... as gargalhadas que me arrancaste com esta "mordaz" descrição (a segunda parte, que a primeira merece uma reflexão cuidada e séria!)sobre os serviços da nossa sociedade... alegraram a minha tarde!
Tão familiar, mas tão familiar...que me parece estares a descrever uma qualquer repartição pública do meu burgo (qualquer uma mesmo; segurança social, repartição de finanças, etc...etc...) lol
Para ti, minha Querida, um beijo sempre cheiinho de admiração...

Cusco disse...

Gosto muito deste tipo de escrita. É uma escrita que apesar de parecer fácil, parecer que as palavras caem no papel, não o é. E eu sei-o perfeitamente.
Gostei muito deste texto. É um texto dificil de conseguir e também não é fácil de ler. Requer experiência, tanto para uma coisa como para outra.
Parabéns.
Até breve
SE DEUS QUISER

Clara Mafalda disse...

Incrivel é o sentido que dás às palavras, às pessoas que mexem a tua vida, ao jeito que te faz devolver o ser e mergulhar num universo paralelo da realidade, mas tão mais estonteamente bonito.
Isso sim é incrivel, e quando te conhecemos depois, então é obvio, que palavras tão belas vindas de ti, fazem todo o sentido ;)
beijinho qerida*

Suspiros disse...

Nada é linear. E as opções, bem como as nossas atitudes, julgo que não devem ser tomadas tendo por referência aquilo que designamos genericamente de hipocrisia, burocracia... Ainda que efectivamente assim seja, temos que ser nós, com as nossas imperfeições e algumas virtudes também a, pelo menos, tentar fazer a diferença. Quem sabe se assim não ganhamos todos?
Gostei muito deste blog, escreves bem, com frontalidade e muito sentimento! Gostei igualmente da inteligente ironia...

:)

Marta disse...

A burocracia descrita de uma forma bem mais interessante do que é na realidade (mais interessante por estar bem escrita).
Qt à primeira parte... quero acreditar que iremos todos ganhar!
bj

alguem disse...

Belas palavras, bem escritas a transbordar de sentimentos.
Um misto de sériedade com ironia.
Gostei bastante.
Beijo ** :)