sexta-feira, dezembro 08, 2006

Longe demais


Foi a forma como ele disse Miguel. Não era o timbre da voz, nem a pronúncia, mas a combinação de sons, silêncios e cor que transformavam a promiscuidade daquela palavra, saltitando de boca em boca, numa palavra única. Miguel, dito assim, era a assinatura dele. Tê-lo-ia reconhecido entre mil bocas dizendo Miguel. Jurou ouvi-lo, escorrendo daqueles lábios, exibindo uma fileira de dentes perfeitos. Mas não era ele, faltava-lhe o dente afiado desafinando a melodia perturbantemente doce que era o rosto de Fernando. O sorriso que escondia aquela voz não era o dele, mas a palavra pairava ainda no ar como uma nota solta.
- Ouviu-me, Miguel? Perguntava-lhe se já terão o orçamento na próxima semana.
Enquanto descia a rua, Miguel perguntava-se quantos anos teriam passado desde que ouvira o seu nome ser dito assim e porque tinha perdido as pontas dos laços que o prendiam à única pessoa que nunca tinha conseguido esquecer. Uma cena com um namorado de Fernando, recordava-se vagamente. O seu olhar castanho engolindo abruptamente um sentimento que, pela primeira vez, não soubera ler-lhe. Pensou que ele voltaria, como sempre fazia depois de uma discussão. Fernando era uma pessoa tempestuosa. Mas na semana seguinte estaria de novo vagueando pela sala com uma garrafa de whisky na mão e aquele sorriso imperfeito e diria "Larga lá isso, Miguel, hoje vamos comemorar.". E rir-se-iam, ririam até saltarem lágrimas do canto dos olhos. Porque na sua vida de comuns rapazes nunca havia nada a comemorar. Sim, eram ainda rapazes naquela altura. Depois Fernando sentar-se-ia junto da lareira a desfiar o novelo das zangas com o último namorado e Miguel suspiraria, lamentando ter passado já demasiado tempo desde que se deslumbrara com as birras de alguém. Ficariam assim até de manhã, fazendo contas à vida. Nunca chegavam a conclusão nenhuma, isso era um tácito ponto de honra entre eles. Mas Fernando não voltou. Nem naquela semana, nem na seguinte, nem em todas as que se seguiram.
Miguel passou a mão pelo cabelo quase grisalho, recordando-se da sua antiga cor despudorada de sol de verão. Loiro e pequenino, tinha sido sempre a razão pela qual Fernando rasgara calças e joelhos, fazendo-se valer de todo o seu 1,90m para o defender. Maldito orgulho, pensou, que o impediu de procurar o amigo. Lembrava-se vagamente de ter telefonado uma ou duas vezes, mas tinha-se deparado sempre com a gravação irritante do atendedor de chamadas. Nunca gostara dessas modernices, arrepiava-o a impessoalidade de falar para o vazio. Essas chamadas nunca foram retribuídas.
- Amanhã é longe demais, sempre os sensatos conselhos de Sara. Miguel sabia bem porque casara com aquela mulher. Não lhe enaltecia os sentidos na febre das paixões, mas apaziguava-lhe a alma, dava-lhe um chão depois de tantos anos à deriva. Lançara âncora devagar, mas para nunca mais partir daquele porto. Amava-a. De um velho amor adocicado. Se tivesse tido um filho, ter-lhe-ia chamado Fernando, mas Sara tinha o ventre seco. Era ele o menino dela e Miguel apreciava-lhe a ternura. Ela pousou-lhe a mão no queixo, conduzindo-lhe o olhar para o dela. «Sabes o que tens a fazer.».
Tocou a campainha, sentindo apertar-se-lhe no estômago o peso dos anos. Perguntou-se o que diria, o que faria, se o amigo assomasse à porta. Tentou imaginar o que seria do seu cabelo preto e das longas pestanas ladeando-lhe os olhos. Ter-lhe-ia a vida traído a beleza? Imaginou-lhe a barba por fazer, fazia parte do charme de Fernando. Nunca conhecera outro como ele, arrastando toda a nostalgia romântica dos galãs a preto e branco no seu passo seguro, com as pontas do cachecol a flutuarem-lhe irremediavelmente atrás. Fantasiava que a sua vaidade permanecesse intacta.
- Sim? Era uma voz de mulher. Enganara-se na campainha, o número da porta oculto sob a poeira da memória. Há seis meses que o apartamento de Fernando estava abandonado. A vizinha era simpática e Miguel subiu. Da porta violada e dos estores partidos, não se lembra senão da desolação de ver o passado afogar-se eternamente nas águas fundas do esquecimento.
Esse Inverno foi sombrio, submerso em culpas e alucinações. Mas seguiu-se a Primavera e, por fim, o Verão. Com carinho, paciência e muitos bolinhos de canela, os seus preferidos, Sara foi quebrando o gelo, acalmando-lhe as dúvidas, lembrando-lhe que nunca se deve deixar o remorso esmagar a magia das recordações. Viram muitas fotografias juntos e choraram no ombro um do outro. Os sentimentos naufragados, os gestos errados, os anos que o separavam da reconciliação que nunca tentou, todas as feridas abertas foram sucumbindo ao perdão e à aceitação de que não poderia exigir mais de si do que o que saberia na altura. Miguel tinha voltado à loja de informática, à azáfama dos preparativos para a viagem de férias e não pensara mais em remexer na inevitável partida do seu amigo.
Até àquele dia. Era uma dessas tardes pachorrentas de Junho, Sara tinha saído para fazer umas compras e Miguel organizava a contabilidade, quando a campainha tocou. Estranhou, não estava à espera de ninguém. Talvez Sara tivesse convidado algum amigo para lanchar e se tivesse esquecido de lhe dizer. Arrastou as pantufas até à porta para receber, desconfiado, um pequeno rapaz, meio ofegante. Era uma encomenda, não tinha remetente, só um selo um pouco gasto que indicava ser de Paris. A data era de há uma semana atrás. Abriu, suspenso a meio tempo entre a curiosidade e o medo. O coração quase lhe parou ao reconhecer a letra.
«Querido amigo, talvez tenha passado tempo demais. A vida cobra caro cada porção de silêncio. Espero que não seja já tarde para te pedir desculpa. Desculpa por não te ter atendido o telefone, nem te ter voltado a procurar. Desculpa por não ter ido ao teu casamento, por não te ter levado a beber um copo no dia em que soubeste que nunca poderias ser pai. Não te espantes, eu fui sempre sabendo de ti, comemorando as tuas vitórias e sofrendo as tuas tristezas. Estive sempre por perto. Espero que venhas a compreender. Quando soube que a minha vida se tornara mais frágil do que uma pequena folha estaladiça de Outono, não pude ficar para ver os teus olhos tristes. Perdoa-me o orgulho, nunca consegui aceitar que me visses encolher-me sobre a minha própria pequenez. Erros, amigo, erros que se pagam caro. Agora que só espero que um último sopro de vento venha apagar a minha chama, achei que talvez não fosse tarde demais para te dizer: Desculpa-me. Do teu sempre amigo, F.»

3 comentários:

Anónimo disse...

Deste muito para ler ;) LOL Não há erros. Só opcções menos benéficas. A vida é simples. Toma-se opcções e vivem-se com elas. As vezes procuramos justificá-las e as vezes a simplicidade de optar encadeia um vasto leque de prós e contras. Não se deve viver à parte disso mas, não se deve viver martirizado com isso, senão está-se a perder a magia da vida, de viver, de sentir com emoção e agir conforme os sentimentos. Contextualizar isso é impossível. Por esta história interpretamos bastantes mensagens. Qual te identificas tu? Com qual te queres identificar? A vida é para ser vivida.. Na paz!! SHANTI!!! :D P.L.U.R.

Bernardo B. Almeida disse...

Uma ficção...sempre acreditei que elas fossem uma maneira que temos de nos abstrair da realidade, de reduzir a realidade em um conto e podermos ler de uma forma que nos inspire e nos possibilite voar nas várias "realidades" que nos rodeiam.
Esta ficção, faz exactamente isso.
Todos temos um amigo com quem falamos dos nossos males de amor, das nossas alegrias, das nossas histórias, e que por um motivo sem muita importância desaparecem da nossa vida..desaparecem das longas horas de conversa, das longas horas de festejo e de ressaca...

Muitas vezes, talvez bastasse um desculpa nosso, talvez as vezes bastasse um telefonema ou uma carta...Mas este conto, esta ficção vem mostrar uma outra face dessas histórias.

"A vida cobra caro cada porção de silêncio."

Acho que é essa a lição, é esta a mensagem que quer passar. Talvez na ficção haja algo para aprender, talvez seja ai onde aprendamos a não cometer os erros...

Parabéns Sammy, é um começo, fico a espera de mais. :) ****

Anónimo disse...

samanta samanta como escreves bem...de certeza que ja tiveste muito quem to dissesse eu sou só mais uma...são as virgulas nos lugares certos os paragrafos correctamente inseridos...o português que brota...é talento sam...talento!é conseguires fazer me ter uma imagem,sentir pelo que escreves por isso,sou mais uma,escreves em talento.nao pares