terça-feira, novembro 14, 2006

Pequenas gotas de cristal


Houve quem lhes chamasse pequenas gotas de cristal
Pérolas encobertas nuns lábios apertados.
Quem lhes escrevesse poemas,
Quem lutasse e enlouquecesse por elas.
Houve quem morresse por as acreditar.

Na sua eterna juventude de seixos rebolando pelos séculos, as palavras conservam essa beleza ousada que inebria loucos e poetas, umas vezes cruel, outras doce, sempre capaz de render uma vida à devoção. Se me perguntassem se as amo, diria que talvez tenham sido a minha verdadeira e insolúvel paixão. Se me perguntassem se viveria sem elas, perguntaria de volta se é possível viver sem alma. Talvez seja, como um junco flutuando despido de vontade ao sabor dos caprichos do vento. Mas, em mim, as palavras fazem vibrar as cordas enferrujadas das emoções. Gosto de ficar de olhos fechados, sentindo-as escorrem-me como beijos pelas curvas e recantos das recordações, de correr atrás delas, rindo e desesperando. Faço-as acontecer, um poder que não é só meu. Há nelas uma qualquer vontade de nascer. Quando é hora, desprendem-se do carnal espectro da minha mortalidade e pingam sobre o papel, deixando para trás apenas aquele perfume quase imperceptível a jasmim dos sonhos que nos acordam à noite e se confundem com a realidade. É inevitável pensar nelas, revivê-las, reinventá-las, amá-las até à inconsciência. Ter sobre elas um insensato sentimento de posse, cunhá-las como impressão digital. Rodeá-las de segredos e chaves secretas, códigos complexos e enigmas indecifráveis, trancá-las sob a sombra obscura dos sentimentos jamais confessados. Para que nunca sejam de ninguém tanto como minhas. É nelas que se liberta a minha ténue humanidade para que eu, quando, como folha estaladiça, me despedaçar sob o peso inevitável dos anos, seja fada saltitando a minha derradeira essência por estas linhas.
Ando cega, escutando-as a toda a hora. Vejo-as espreitar do bolso do casaco castanho que se agita ao fundo, de um olhar felino, de um meio suspiro que juro que quase ouvi, mas as palavras são ninfas infantis que gostam de inventar jogos de faz-de-conta. Afinal de contas, é de mim que elas brotam. Por isso, dispenso o mundo por agora. Preciso de estar com elas. Penso-as a dormir e sonho-as acordada, embalo-as o tempo todo, porque elas são a mais profunda expressão do meu mundo, um reflexo do meu ego. Rompem-se-me do peito com angústia e ternura, com a violência de um grito incontido, manipulam-me o sorriso, não me deixam descansar e eu devo-lhes uma total lealdade. São como crianças, dormitando ao sol e à chuva da minha intempestuosidade e quem as vê assim, tão frágeis pedindo para acontecer, não lhes sabe a tirania. Queimam como droga corroendo-me as veias, tatuadas com a voluptosidade do fogo na minha pele, são pedaço de mim para onde quer que eu vá. Desenham cortinas sobre os meus passos, alheios aos dias, de tão perdidos na perpétua necessidade de lhes dar vida. Estão tão entranhadas que às vezes já nem sei se escrevo para as viver, se vivo para escrever. A tudo, eu procuro-lhe as palavras, os sentimentos como corpos mortos dos quais disseco qualquer coisa para dizer, uma observação constante de um mundo que se faz daquilo que penso. Há mais de construção do que de realidade, mais de interpretação do que de autenticidade. Não é isso que afinal fazemos a toda a hora? Condicionar as vivências por aquilo que sentimos e queremos ver. O amor toldando-nos os sentidos, as doutrinas e supestições, crenças e tradições. São as palavras o meu filtro de memórias, canalizando tão só aquilo que desejo reviver. E, ainda que não deseje, por vezes é imperativo.
É como digo, elas mandam. Escolhem as pessoas e as datas, apoderam-se-me do espírito e da mão e criam novos mundos. Por isso, digo que não saberia viver sem elas, sem esse cordão invisível sobre o qual equilibro cada lufada de vida, que guia os meus passos, que dá materialidade ao meu ser, tão imprescendível como respirar. Não saberia, pois. Sou delas, ausente num permanente estado de embriaguez que me deturpa as imagens. Se no meu espelho, fores mais gordo ou mais alto, se os teus traços flácidos de repente tomarem o vigor de um belo princípe encantado ou te nascer uma veruga mesmo no meio do nariz, não me leves a mal. É da intensidade que se geram as palavras e a normalidade nunca convenceu. As palavras são lendas que nascem do rodopiar imprudente do mundo, exigentes nas suas manobras de diversão, alimentadas de pequenas mentiras. Mas as mentiras na boca delas são verdades. Não me leves a mal. São assim as palavras e eu serei sempre escrava do "palavrear".



6 comentários:

Light disse...

As palavras que nos faem sonhar,que nos fazem ser aquilo que na realidade nos custa ver!


"Escrevi durante horas…
Espalhei pela folha branca de minha vida, mil palavras tingidas de preto,
palavras que o arco-íris se recusou a pintar de luz.
Palavras sem sentido, feitas de gritos que ninguém ouve…
Palavras como a emoção que são cantadas em todas as canções,
melodias de desejos, de sonhos…
Palavras de esperança sem esperança…
Palavras de carinho, cheias de ternura e sorrisos,
escritas para beijar quem as lê, nem que por um breve momento.
Nada estava bem. Apaguei tudo e de novo escrevi.
O branco de novo aparecia salpicado de uma só cor, triste, sem graça.
Então fui desistindo, uma por uma, das palavras mais bonitas.
Estavam no sítio errado. Não eram minhas!
Apaguei cada sentimento e deixei apenas as palavras vazias, cor de minha alma.
Mas mesmo assim ainda não me sentia bem.
Olhava para elas e sentia bem no fundo do coração a dor de as sentir…
Não as quero mais!
Quando olhei de novo, a folha branca continuava branca, cheia de um vazio enorme…
Apenas um pontinho lá estava esquecido… mas era apenas uma pequena lágrima…"

Bj Sam

Sandra disse...

Como eu percebo essa tua paixão pelas palavras.Também eu tenho um sentimento muito especial por elas...então quando são ditas/escritas por ti ganham um brilho especial.
Texto maravilhoso linda=)
Bjinho grd grd********

Anónimo disse...

"Just like a star across my sky,
Just like an angel off the page,
You have appeared to my life,
Feel like I'll never be the same,
Just like a song in my heart,
Just like oil on my hands

You've got this look i can't describe,
You make me feel like I'm alive,
When everything else is au fait,
Without a doubt you're on my side,
Heaven has been away too long,
Can't find the words to write this song,

I have come to understand,
The way it is,
It's not a secret anymore,
'cause we've been through that before,
From tonight I know that you're the only one,
I've been confused and in the dark,
Now I understand"

Sabes de onde, e porque...:)
Adorei a noite..magica como seria de esperar..

Rui Nelson Dinis disse...

Olá, voltaste. Estão ainda melhores as tuas palavras escritas. Ou serão ditas?

Anónimo disse...

Que mais posso dizer???
Tu... como sempre! Quando penso que chegaste ao auge, aí surges tu ainda melhor (se isso se pode dizer...)
Arrebatadora... Divinal!
Já pensaste em deixar que o "mundo" te leia?

TP * disse...

nota-se que amas escrever! e a escrita ama-te a ti tb! :) gostei do q li! bjinho * * *