sábado, setembro 23, 2006

Regresso

São as asas chicoteando contra a janela fechada dos dias que uma manhã nos sacodem numa viagem turbulenta pelos meandros da vida. É a liberdade a embriagar-nos os sentidos, a juventude a queimar-nos as veias, os ecos da Terra a girar a gritarem-nos desejos aos ouvidos. Partimos, partimos sempre. O mundo lá fora move-se depressa demais e não espera por nós. A sede de experiências arrasta-nos aos trambolhões por rios de risos e de lágrimas. Enchemo-nos de vida, deslumbramo-nos com um ou outro cometa, rasgando suspiros ao céu, mas sentimos sempre o pó do caminho nas mãos e na boca e percebemos que a noite é tão escura ali como em qualquer outro lugar.
Então voltamos... À infância, aos lugares perdidos das nossas remotas recordações. Voltamos, como filhos pródigos, com os olhos secos e o corpo coberto de cicatrizes. Voltamos, sabendo o exacto lugar a que pertencemos. Há em nós um rasto do fascínio que nos abriu as janelas de par em par para receber a brisa do mundo e o profundo conhecimento da nossa alma que, por fim, pudemos tocar. Trazemos na bagagem mil estórias e cansaços, mas queremos é que não nos perguntem nada. Um beijo e um abraço incendiando-nos a ternura, os risos que trazemos no regaço para partilhar, o perfume da casa e das coisas e um caldo que nos aqueça os corações. Viemos sentindo-nos das origens, que sabem quem somos até quando nos perdemos de nós, aceitando um passado que é parte da pessoa que se formou debaixo da nossa pele, descobrindo, surpresos, que sempre amámos a autenticidade dos passos que ficaram para trás, tudo aquilo que a febre do deslumbre nos fez abandonar.
Deixo-me ficar, saboreando o silêncio e a pacatez, deliciando-me com a vida secreta da cidade que antes me parecera tão apática, perguntando-me porque demorei tanto tempo a admitir que a nostalgia do regresso. Volto a casa com a satisfação inconfessável das saudades saciadas, aninho-me no meu lugar no sofá, que já me sabe as formas e se adelga para me receber. Compreendo que a pessoa que vejo no espelho está nua, rasgadas as máscaras da felicidade e da amargura que socialmente incorporam o nosso sorriso, e, ainda assim, sentindo-me tão protegida, vestindo a veracidade íntima de um ser sem pretensões.
Sei que um dia voltarei à solidão da casa vazia, à comida enlatada e às noites vadias. Adoptei o corropio incessante da metrópole como ritmo de vida e algum dia ele há-de arder-me no sangue. Mas também sei que parto com a barriga cheia de um sentimento plácido de doçura, com as mãos a escorrerem carinho e um sorriso maior nos lábios. Sei que levarei este lugar comigo, ainda que em segredo, e que cedo voltarei para me lambuzar de silêncios pulsando vida e de mimos. Sei que esperarei que a porta se abra e tu venhas contar-me as aventuras do dia ou até que te feches num traço mal-humorado, mas que sejas tu. E percorrerei cada passo de volta a casa para te encontrar e para te dizer que, ainda que o vento me insufle as asas e eu largue âncora para destino incerto, é ao teu lado que sou feliz.
Tem a magia de nascer de novo cada regresso a casa...

6 comentários:

Anónimo disse...

magia tens tu e as tuas palavras, a harmonia que há entre elas e entre ti é tão sublime que parecem um só. e talvez sejam mesmo. acredito qe sim, qe tenhas essa capacidade de ser o qe escreves e de escreveres o que é. às vezes parece demasiado bonito para ser verdade. e assim vou tornando o teu mundo no meu (se é qe me dás licença), as tuas palavras nos meus sorrisos e a tua harmonia na minha canção. e assim vou aprendendo e vou me inspirando para a cada acordar ter uma nova fonte onde beber. corre em ti a linfa mais pura e eu gosto dela como gosto de tudo o que vem de dentro e me faz acreditar que afinal ainda há pessoas assim :D
ja tas add msn (um email estranho, muito estranho :P butirskaya)
beijinho minha qerida

M disse...

transpiras a alma!

Morphine disse...

wow, é-me familiar, identifico-me *

Rui Nelson Dinis disse...

O voo do passáro, de regresso ao ninho. Belo texto.

pecado original disse...

estamos bem ao lado de quem nos encanta e que mesmo sem condições elegantes ali é o paraiso.
tens harmonia nas palavras e açucar na expressão.

Gostei, passa um bom dia, bjs

Anónimo disse...

Não é num "traço mal-humorado" que agora me escorrem duas grossas gotas face abaixo... é apenas não saber que dizer!
É um facto que "és o que escreves e escreves o que é" e mesmo sem ter consciência disso, sempre esperei qualquer coisa...
Que o fio de prata (do sol, porque o da lua estará sempre certo!) seja sempre o caminho que me devolve a tua âncora.