segunda-feira, maio 28, 2007

Um outro verão

Anoto no canto do guardanapo os silêncios para não me esquecer das palavras que já disseste. Parece tudo feito à medida, a tua fúria e o meu cansaço. Afinal, há um tempo certo para partir. Não me lembro de me ter virado para acenar.

Deitei fora o medidor de passos e a bola de cristal, o velho globo riscado a giz e as bússolas que nunca me orientaram. Fiquei com a agenda pelo pequeno prazer de a saber vazia. Um dia, será a falível memória o único resquício do meu caminho e, então, poderei docemente trair-me, recordando uma lealdade que nunca tiveste e que eu aprendi a não te guardar.

Incomoda-me ouvir pingar lamentos no sótão atulhado, como se entoassem uma espécie de tristeza, por isso arrasto os móveis até arranhar os sentidos. Até ao sangue secar nas veias, até as palavras pararem de acontecer. Às vezes, parece-me que vai tão mais de mim naquilo que não digo, nas entrelinhas do meio segundo em que olho para ti e te esqueço. Sento-me e baloiço na ténue vertigem de saber que ainda posso saltar, sentir-te o chão esmurrar-me os joelhos, e que não quero, porque a dura verdade que me traz incerta na tua vida é que eu sempre amei mais a liberdade do que te quis a ti.

Deixo-te ir. Como se nunca tivesse querido que fosse para sempre. Passo impune, incólume às ridículas promessas que o delírio das insónias nos consumiu. Fomos mais, muito mais. Mas as nossas ruas deram sempre em becos sem saída e cedo o soubemos. Há muito que nos despedimos, um acordo tácito que o teu olhar pardo não me desmentiu. Por cima do ombro, adivinho-te o gesto inacabado, suspenso no tempo indeterminado que demorarei a voltar. Recuso-me a olhar. Há em mim mais, muito mais. Um dia, voltar-te-ei a encontrar.

13 comentários:

Clara Mafalda disse...

em ti ha sempre muito mais, disso nunca duvides. ha muito mais do que palavras, ha muito mais do que sentimentos, ha muito mais do que firmeza a escorrer-te pelos dedos e a desmair nos nossos monitores. em ti ha muito mais. tudo é muito mais que um dia. e é por isso que talvez voltes a encontrar outra vez. para teres mais. o que mereces.
beijo qerida

White Castle disse...

Acho que entendi ;)

o alquimista disse...

Tem magia o teu espaço, volto se não te importares...


Beijinho

Joaninha disse...

É supreendente o modo como o ser humano se revela tanto nos silêncios e nos gestos e atitudes. Por vezes mais do que nas palavras e comportamentos ponderados. Pois, como dizes, "vai tão mais de mim naquilo que não digo".

Anónimo disse...

"...recordando uma lealdade que não tiveste e eu aprendi a não te guardar..."
"...baloiço na ténue vertigem de saber que ainda posso soltar..." SUBLIME!

Só quem é livre é assim! Palavras para quê?! Dizes tudo, mesmo sabendo a pouco, porque me fazes querer mais.

nOgS disse...

Há momentos que são para sempre (dentro de nós)...

Marta disse...

Excelente!
"eu sempre amei mais a liberdade do que te quis a ti."
Isto sempre assim foi comigo, e isso foi apenas mais um motivo, para me desiquilibrar no balanço, para me esmurrar no chão...
"Um dia, será a falível memória o único resquício do meu caminho e, então, poderei docemente trair-me, recordando uma lealdade que nunca tiveste "
Quantas e quantas vezes... uma memória mascarada, um doce que vem de um açucar acrescentado mt tarde, um açucar que nunca mistura...

Beijos

Sandra disse...

Tu és muito mais miga!Tudo em ti é muito mais...muito mais sentimentos, muito mais vida.E se quiseres voltar a encontrar tenho a certeza que o vais fazer.
Bjinho grande minha linda**

happiness...moreorless disse...

sem palavras...adorei!

****

Alexandre disse...

O começo, o fim.
Os silêncios, as palavras.
O acreditar...
A vida...
O destino, talvez...

Fuzzo disse...

Gosto mto do que escreves e o acompanhamento gráfico é fabuloso mto bom mesmo... fiquei fã se quizeres passa em wazami.blogspot.com mto nesta onda acho eu Beijos e Agrafos ::::)))))

Toutinegra Futurista disse...

Vale sempre a pena a passagem por aqui
Um abraço

P disse...

Até ao sangue secar nas veias, até as palavras pararem de acontecer.
ÀS vezes parece mesmo que tudo vai secar mas...