quinta-feira, maio 03, 2007

Perdidos e achados


Do que mais me lembro é de aquele ar de criança espantada, o batom cereja contornando-lhe a boca arredondada e os olhos, de um impossível tom de azul, arregalados. E, ainda assim, os pés que, numa provocação ingénua, lhe pingavam lama no vestido branco falaram-me mais acerca dela, das contradições que lhe prendiam o cabelo num penteado aprimorado, da contrariedade que a mantinha, obstinadamente, presa a uma infância que já ficara para trás.

[Houve quem me dissesse que haveria de a compreender.]

Ela tinha sonhos, como qualquer pessoa os tem. E estava munida de uma coragem arrogante para os perseguir. Ao egoísmo possante que a beleza jovem lhe permitia chamava amor próprio. Pensava, a pobre pequena, chegar a um acordo confortável com a vida que lhe abriria a porta para uma espécie de felicidade. E, no entretanto em que a intempérie lhe varria as paredes do encantamento, ia tentando pintar o cimento estalado com os lugares possíveis dos sonhos remendados. Inalou durante tanto tempo a cinza dos desejos que o presente ia queimando que, um dia, deu por si sufocada de frustração. Ela lutou, dias a fio, para, à socapa do nevoeiro, não perder de vista a outra margem, aquela dos dias felizes, ensolarados de amores correspondidos e de ambições nunca tolas demais. Mas todo o tempo esteve cega para o horizonte dentro dela, nunca pôde, sem o toque da inquietude, sentar-se numa cadeira e precipitar-se despudoradamente, até que o estômago se contorcesse, na estonteante sensação de existir. Não, ela nunca percebeu que cada lugar vazio esteve sempre cheio da sua presença, que as pontas mal atadas das pessoas que lhe atravessaram o quotidiano a prendiam mais à vida do que o nó irrepreensível que a amarrava àquelas que já a haviam deixado. Ela nunca soube que não há alquimia que dos sonhos faça realidade, porque a magia está em saber ser feliz com a verdade.

[Houve quem me dissesse que haveria de a compreender.]

Talvez ela se pudesse ter desfeito das mobílias velhas e pesadas que lhe atravancavam os sorrisos, quiçá plantado algumas amizades que veria morrer. Talvez ela tenha gritado ao espelho e, no silêncio que ele lhe retribuiu, visto um eco de si mesma, todo o mundo que tinha, um punhado de pensamentos e emoções e, na bagagem, algumas recordações. Talvez ela se tivesse sentido em casa.

Porque na vida tudo são perdidos e achados.
Que eu saiba perder para me encontrar.

11 comentários:

Marta disse...

Bonito como sempre!
No confesso aqui tens um "prémio", não perdido!

Bom fds
bj

Joaninha disse...

Será que alguém irá, alguma vez, descobrir essa alquimia que "dos sonhos faça realidade"?

Espaços abertos.. disse...

Sonhos de criança que um dia foram recordados como uma realidade reencontrada.

Bom fim de semana

Bjs Zita

Anónimo disse...

Quando se tem dentro um horizonte todos os sonhos PODEM ser realidade; a arte está no QUERER e saber ser feliz com a verdade. Leio-te vezes sem conta, porque cada texto teu é um prazer servido aos pedaços...

Como disse "delilah": queria tanto ver um filme com as tuas palavras!

happiness...moreorless disse...

Gostei muito apesar de não ter percebido bem.
Comecei a ler e fiquei logo colada, cheguei ao fim e fiquei com vontade de mais.

***

Suspiros disse...

Perder-se, nem que seja na própria tontura da plenitude!
:)
Lindo, como sempre!
;)

pecado original disse...

dwkitFalaste sempre no passado. E ésse é um tempo verbal que doi.

Talvez ela fosse especial demais para a compreenderem.

um beijo reencontrada.

Cusco disse...

Após uma breve ausência venho agradecer a visita e deixar os votos de um bom fim de semana.
Estive adoentado com um pouco de Febre..

Até breve
SE DEUS QUISER!

Cátia disse...

OLA, NAO CONHEÇO ESTE CANTINHO, MAS VOLTAREI COM MAIS CALMA PARA LER.

HOJE VENHO APENAS DIZER QUE A MARTINHA DO CONFESSO AQUI FAZ ANINHOS.. NAO QUERES PASSAR POR LÁ?? VAMOS FAZER UMA FESTA EM CASA DELA.. EHEHEH.

BEIJINHOS

filipelamas disse...

Quem se perde assim acaba sempre por se encontrar!

Clara Mafalda disse...

encontro-me sempre um bocadinho mais quando cá venho x')
lindo, sempre.
beijinho gd